
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) publicou no Diário da Justiça o Ato Normativo nº 238/2025, que oficializa a transformação da Comarca de Presidente Kennedy em uma Comarca Digital. A medida integra o projeto “Justiça Inteligente”, que tem como objetivo a reestruturação do Judiciário estadual a partir da centralização administrativa, uso de tecnologia e digitalização integral dos processos.
Com a mudança, a estrutura tradicional da comarca — que incluía vara própria, cartório judicial, atuação diária de juiz de direito e demais órgãos integrados — deixa de existir na prática. Os processos passam a tramitar remotamente sob responsabilidade da Comarca Regional de Itapemirim e Marataízes, onde também funcionarão as secretarias regionais responsáveis pelas ações de Kennedy.
O fórum local permanece em funcionamento, mas com equipe mínima de um servidor e um estagiário, conforme prevê o próprio normativo. Eles deverão oferecer suporte presencial à população, enquanto a movimentação processual e os atos judiciais serão conduzidos remotamente.
Embora a digitalização e regionalização sejam justificadas pelo TJES como mecanismos de modernização e eficiência, a decisão marca um recuo importante da presença do Poder Judiciário em Presidente Kennedy. Em termos práticos, a cidade perde sua vara, seu juiz titular e sua atuação judiciária direta, ficando juridicamente vinculada a outras comarcas.
Esse cenário acende um sinal de alerta sobre a diminuição da presença institucional do Estado em regiões interioranas. Para cidades pequenas como Kennedy, a existência de uma comarca ativa representava mais do que um fórum: era um símbolo de autonomia, de garantia de direitos e de reconhecimento da cidadania local. A substituição desse modelo por um atendimento remoto e esporádico levanta preocupações legítimas sobre a interiorização da Justiça e o acesso equitativo a direitos fundamentais.
Barreiras digitais
A decisão também esbarra em uma realidade concreta do município: o déficit de acesso à internet, especialmente comunidades isoladas na zona rural. Presidente Kennedy possui uma população com forte base no campo e nem todos os cidadãos possuem familiaridade com processos eletrônicos ou estrutura para resolver demandas jurídicas online.
Apesar da promessa de manutenção de um ponto de atendimento no fórum local, o número reduzido de servidores levanta dúvidas sobre a capacidade de absorver a demanda da população, especialmente em situações de maior complexidade ou em casos que envolvam pessoas com menor letramento digital. Há risco real de que cidadãos mais pobres, idosos e moradores de regiões afastadas enfrentem obstáculos ainda maiores para acessar a Justiça.
Outro impacto tangível é o enfraquecimento do ambiente institucional e profissional da cidade. A presença de um fórum ativo com juiz, assessores, oficiais, servidores e estrutura de apoio fomentava não apenas o setor jurídico local — advogados e cartórios — mas também impulsionava o comércio e os serviços na cidade.
Com a desativação da estrutura judiciária tradicional, empregos diretos e indiretos são afetados, gerando um esvaziamento institucional que tende a se agravar com o tempo. A presença estatal é também um fator de atração e fixação de profissionais qualificados, algo que pode ser comprometido com a digitalização completa.
O anúncio da mudança ocorreu por meio de publicação direta do TJES, sem consulta pública prévia, audiências com a comunidade ou diálogo com representantes do município. Para muitos, a ausência de debate transparente antes da reestruturação representa uma falha grave de participação democrática na condução de mudanças com impacto direto na vida da população.
Além disso, não há garantias formais de que o modelo digital será periodicamente avaliado com base em indicadores sociais e não apenas processuais, o que aumenta o risco de invisibilização das dificuldades enfrentadas pela população de cidades digitalizadas.
A criação de comarcas digitais no Espírito Santo já foi implementada em municípios como Jerônimo Monteiro, Marilândia, Atílio Vivácqua e Rio Bananal. Segundo o TJES, o novo modelo tem proporcionado maior agilidade processual, com uso de inteligência artificial, padronização e distribuição equilibrada de trabalho.
No entanto, não há estudos conclusivos sobre os impactos sociais, econômicos e institucionais desse modelo em cidades de pequeno porte. Os dados públicos disponíveis são limitados e se concentram em indicadores internos do sistema de Justiça, deixando de fora aspectos como percepção social, inclusão digital e qualidade do atendimento.
Caminho sem volta?
A transformação da Comarca de Presidente Kennedy em unidade digital parece, neste momento, irreversível. Ainda assim, especialistas em direito público e entidades da sociedade civil apontam que o modelo não pode ser conduzido sem monitoramento, correções e participação comunitária.
A desjudicialização local, se não for compensada por medidas de inclusão e fortalecimento do atendimento público, pode resultar em desequilíbrio no acesso à Justiça e na própria percepção de pertencimento da população ao sistema institucional.
Mais do que uma questão administrativa, a digitalização total da comarca de Presidente Kennedy reflete uma mudança de paradigma: um Estado que se moderniza, mas também se distancia fisicamente de territórios mais periféricos. Para cidades pequenas, onde a presença de órgãos públicos garante sensação de pertencimento e dignidade institucional, esse movimento gera insegurança e pode acentuar desigualdades.
A promessa de uma Justiça mais inteligente e eficiente deve caminhar junto com o compromisso de não deixar nenhum cidadão para trás — especialmente os que mais precisam da presença concreta do Estado.
FONTE: KENNEDY EM DIA