Professor larga tudo para percorrer o trajeto do rompimento da barragem de “Mariana”

Na primeira fase da expedição, Rodrigo Bezerra e o designer Patrick Amâncio passaram por Bento Rodrigues e mais sete municípios mineiros, colhendo incríveis histórias de superação e resiliência

- Por do sol de Mariana (MG)

Um professor de Linhares, no norte do Espírito Santo,largou tudo para percorrer os municípios afetados pelo rompimento da barragem na cidade mineira de Mariana. Com o apoio da Coppo Consultoria e Projetos, Rodrigo Bezerra decidiu atravessar a fronteira para revelar histórias de superação e resiliência marcadas pelo desastre que completará 10 anos em novembro deste ano.

Na primeira fase do projeto inspirador, Rodrigo e o designer Patrick Amâncio passaram por oito municípios mineiros e no dia 22 de setembro começará a segunda fase partindo de Governador Valadares (MG) e finalizando na Foz do Rio Doce, em Regência (Linhares/ES). Além da produção do livro “O Vagão de Bento”, o público pode acompanhar toda a expedição através do Instagram @beze_trips e do Canal Bezê no youtube (@Bezê-x7f).

“A partir dessa experiência quero contar para o mundo uma história bem positiva, de pessoas inspiradoras, resgatar memórias de sucesso, fé, reinvenção. Estou acreditando numa retomada de vida maravilhosa dos moradores impactados. Ainda é um sonho, mas confio na força regenerativa dessa gente”, conta Rodrigo bastante emocionado.

Essa jornada começou no dia 18 de julho, a partir de Bento Rodrigues, local soterrado pela lama. Na sequência, passaram pelos municípios de Mariana, Barra Longa, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado, Santana do Deserto e Ipatinga. Em doze dias eles conheceram personagens com histórias fantásticas de superação, de quebra de estigmas; quando ser forte é atitude de compromisso com a vida. Confira a seguir os heróis dessa reconstrução, sobre a qual cada território afetado pelo rompimento da barragem de Mariana passou.

Bento Rodrigues, o marco do primeiro avanço da lama

Bento Rodrigues foi o palco do tsunami de rejeitos de mineração, que varreu o subdistrito de Mariana para debaixo daquela lama. De lá, o que se vê é um território praticamente abandonado. Mas também, há o registro vivo da heroína Paula Alves, que no dia do rompimento, ocorrido em 5 de novembro de 2015, saiu pelas ruas de Bento Rodrigues gritando para que a população pudesse se salvar a tempo.

“Essa história mudou drasticamente minha impressão desse território. Fez com que pudesse focar minha energia ali dentro da ótica da resistência mesmo. Depois, estando frente a frente com a Paula, pude mais uma vez me emocionar com seu incrível depoimento, uma forma singela de viver sua vida e ressignificar sua trajetória pós-trauma”, conta Rodrigo Bezerra, que estava acompanhado de Patrick Amâncio.

Rodrigo ainda descreve: “Paula contou-nos também a história de como houve grande solidariedade entre os moradores de Bento, após a tomada de suas casas pela lama. Na parte de cima do subdistrito, 21 casas se salvaram do soterramento, a partir das quais foram vistas cenas do mais puro amor ao próximo: como divisão de provimentos, dormida para todos aqueles que foram repentinamente desabrigados, dentre outras virtuosas ações”. 

Ademais, a nova Bento Rodrigues, construída em substituição da soterrada de outrora, fez-nos repensar os padrões que tínhamos a cerca das indenizações realizadas por ali. Simplesmente um bairro de alto padrão, com belíssimas áreas comuns, ruas largas, bem iluminadas, com praças, jardins, enfim, surpreendeu.

Mariana, cidade histórica de Minas Gerais

Primeira vila de Minas Gerais, Mariana é conhecida por seu rico patrimônio histórico e arquitetônico. Neste exuberante município, o professor Rodrigo Bezerra encontrou uma série de personagens surpreendentes. “Como exemplo, a história das ‘minas de Gogô’, uma memória rica relacionada com a ocupação desse território ainda em meados do século XIX, pós Lei Áurea, de quando vários ex-escravizados se refugiaram, dando ali início à essa comunidade quilombola, no entorno da cidade de Mariana, contada pelo seu Salvador Alves de Freitas”, relata Rodrigo.

Rodrigo e Patrick registraram um fato curioso na região: “O Rio Gualaxo, que mais abaixo vem a se juntar com outros na formação do Rio Doce, estava correndo lindo pela calha de seu curso. Suas margens foram significativamente restauradas, de modo que não dava para se ter uma visão de resquícios que remetesse à maior tragédia ambiental da história do Brasil. Salvo alguns pontos que, em suas margens, ainda marcavam no caule das árvores o nível feroz de suas águas enlameadas de outrora”. 

Mas no aspecto geral, a cidade de Mariana respira normalidade. “Observamos um povo de semblante sereno. Em muitas conversas constatei um ar de página virada, alguns chegavam a dizer que foram abençoados pelo acontecimento, dada a forma como foram indenizados, possibilitando uma melhoria significativa de suas vidas nessa esfera”, pontua o professor. 

Barra Longa e a força de sua história

Barra Longa, conhecido por sua hospitalidade tipicamente mineira, surpreendeu pela energia e a força de sua história. Desde sua fundação, diretamente relacionada com a expansão de Mariana, com a corrida do garimpo, sonho de riquezas possíveis atraía milhares de investidores. Logo, a área foi sendo rapidamente povoada, empurrando rio abaixo os proletários do garimpo, tornando-se símbolo do ciclo de exploração de pedras preciosas.

“Chegamos nessa pacata cidade, de povo tranquilo, sorriso fácil e muitas histórias para contar. Dentre elas, a do caboclo d’água me chamou atenção pela veemência com a qual Daniel Kafuri, o Mucci, contou-nos.

Segundo ele, o caboclo estava atacando várias cabeças de gado pela região, incluindo algumas do seu rebanho. Determinado dia, junto com mais dois ajudantes, estavam cercando uma área, quando de dentro do rio viu saindo um bicho em formato de homenzinho com pelagem curta e dentes pontiagudos, com garras de quatro dedos, com unhas compridas, vindo em sua direção; foi rápido com sua enxada para sua defesa, mas tomou um golpe que lhe rendeu diversas marcas de rasgo, cujas cicatrizes vimos no momento em que nos contava a história, acompanhado de dois senhores que nos rodeava nesse momento, que juravam se tratar de uma acontecimento verídico”, conta Rodrigo Bezerra.  

O município de Barra Longa conservava um estilo de vida rudimentar. Em meio a algumas voltas pela cidade, Rodrigo flagrou uma roda de conversa com cerca de dez senhoras na frente de uma casa de oração. “Não me contive. Fui me enredar com elas nas histórias daquele lugar, que se traduzia em continuidade exemplar de ressignificação efetiva. Muito se escutou sobre as oportunidades financeiras promovidas pelo programa de compensação das mineradoras responsáveis pelo crime de outrora. A energia era de contentamento e bastante humor. Foi uma noite muito feliz”, relata o professor.  

Mas antes de partir desse território, Rodrigo e Patrick Amâncio ainda conversaram com o poeta Sérgio Fábio do Carmo, o Papagaio. “Ele nos presenteou com uma série de composições poéticas à beira-rio. Momento em que nos expôs sobre a questão da indenização dos garimpeiros, cujos emolumentos chegavam a quase um bilhão de reais, previstos para serem distribuídos para essa categoria”, afirma. 

Rio Doce respira limpeza e organização impecável 

Rio Doce, município localizado na Zona da Mata Mineira, impressiona pelo ar de limpeza e organização sem igual mesmo após o impacto do rompimento da barragem de Mariana. “Cada cantinho com preservação de seus prédios e praças, com uma jardinagem impecável, a conservação de sua história a partir de manutenção de suas fachadas, com o museu da estação plenamente em funcionamento, um jardim muito bem projetado em seu entorno”, disse Rodrigo Bezerra. 

Na companhia de Patrick Amâncio, o professor Rodrigo acrescenta “as pessoas desse lugar foram super receptivas. Estivemos com Dona Rocelis, dona de uma casa de cereais, a qual nos concedeu também uma entrevista muito produtiva, com relação ao contexto histórico daquele lugar. E de repente, saindo de lá, encontramos com o Sr. Antônio Cenachi, um autêntico tropeiro de Minas, com o qual tivemos o prazer de fazer um dueto com nossas gaitas de boca. Um momento mágico”, relata.

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Santa Cruz do Escalvado, histórias traduzidas em trajetórias vitoriosas

“A sorte estava do nosso lado mesmo. Chegamos à Santa Cruz no fim de semana em que se comemorava a festa da cidade, na qual se reuniam os santa cruzenses ausentes, propiciando muitas histórias maravilhosas que traduziam trajetórias vitoriosas, recheadas de sonhos, onde se mantinha um ar de satisfação por onde passávamos”, conta Rodrigo Bezerra, que junto com Patrick Amâncio, registraram todas essas impressões do município mineiro.

Rodrigo completa: “Dona Cidinéia nos recebeu na igreja matriz do município e pode nos ajudar a entender a energia que percebíamos ali. Sem falar na maravilhosa acolhida do Sr. João Bosco: com seu projeto ‘plantar e cuidar’, a partir do qual se fomentava a preservação e o repovoamento natural das margens do rio. O amor reluzia do seu olhar! Um homem que nos inspirou profundamente”. 

Santana do Deserto – um destino de fé e contemplação

Santana do Deserto, pertencente à Santa Cruz do Escalvado, sedia o Santuário de Nossa Senhora do Rosário. Rodrigo Bezerra e Patrick Amâncio chegaram ao local no dia da festa da padroeira, uma manifestação de fé e alegria com a presença de devotos vindos de várias partes do Brasil. 

“Nossa permanência no território foi rápida, estivemos cerca de quatro horas por lá. Aproveitamos o festival de comidas típicas da região. Em torno do Santuário se formava uma grande fila para ver a imagem de Nossa Senhora. Uma energia fora do comum.  Vibramos juntos daquela gente, em busca de captar ao máximo aquela energia maravilhosa. Saímos de lá com uma sensação de leveza e com coração em alegria. Mais um território que nos transmitiu um ar de superação, de esperança acesa, de força mesmo”, afirma Rodrigo. 

“Ipatinga foi supreendentemente positiva. Deixou saudade!”, diz Rodrigo

Para Rodrigo Bezerra Ipatinga é um território singular. “O município nos impressionou com a organização, limpeza, áreas públicas bem cuidadas, bastante praças e canteiros muito bem arquitetados”. Junto com Patrick Amâncio, Rodrigo conheceu o senhor Reinaldo da Silva, no auge de seus oitenta e poucos anos.  “Fluía dele uma energia alegre, envolvente. Quando soube do nosso objetivo dentro daquele território, convidou-nos para almoçar em sua casa, ocasião que aproveitamos para entrevistá-lo.  Quanta cultura nos envolveu ali. Seu filho, Ricardo, puxou um violão da capa e começou a nos mostrar suas composições. Tirei minha gaita do bolso e ficamos ali duelando notas afins. E o almoço? Pense numa explosão de sabores! Só em Minas mesmo. Indescritível”, disse.    

Dali, Rodrigo e Patrick partiram para o Parque Ipanema, onde aproveitaram a tarde em meio a um padrão estilo europeu no que tange à organização, limpeza e perfil de utilização daquela área. “Ficamos impressionados com tamanha beleza ali. Nada fora do lugar, harmonia, leveza e clima super familiar, crianças soltando pipas, piqueniques, bicicletas, casais apaixonados, música de qualidade, culinária maravilhosa”, relata Rodrigo.

Ademais conheceu ali dona Márcia, que contou como sua vida foi sendo transformada para melhor, diante do crime de outrora. De avassalada proletariada, para empreendedora no ramo de doces caseiros, junta à sua irmã Carla. Ela também mudou de vida e há cerca de sete anos, a partir de sua indenização, abriu uma fábrica de doces e salgados, atendendo festas particulares e eventos públicos. “Márcia desabafou bastante sobre seu passado mais triste. No entanto, demostrava a alegria com sua vida atual. Com certeza estávamos atingindo olhar por olhar a energia que buscávamos encontrar. Ipatinga foi surpreendentemente positiva. Deixou saudade”, confessa o professor.

Com todos os relatos e experiências, percebemos a importância da regeneração de todo o território que surge como uma oportunidade não apenas de promover o desenvolvimento econômico das comunidades atingidas, mas também de ressignificar os territórios marcados pela dor, transformando-os em espaços de aprendizado, memória e reconstrução coletiva.