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Imagine a situação: você tem um emprego estável, um relacionamento saudável e vê na sua vida motivos para ser feliz. No entanto, ao invés de se sentir bem, você é tomado por uma sensação negativa. De alguma forma, a felicidade parece sempre vir acompanhada de culpa, principalmente quando você se compara a outras pessoas, que, ao contrário de você, estão em momentos complicados ou de sofrimento. Embora essa situação possa parecer conflitante, principalmente em relação aos sentimentos, não é errado afirmar que é possível sentir-se culpado pela própria felicidade. E por trás dessa culpa estão diferentes fatores.
O primeiro deles, segundo o psiquiatra Bruno Brandão, tem relação com o grau de amabilidade de cada pessoa. “Existem pessoas que são altamente amáveis e pessoas que não são tão amáveis assim. O oposto de amabilidade é o que a gente chama de ‘combatividade’. Uma pessoa com baixa amabilidade é muito combativa. Uma pessoa com baixa combatividade é muito amável. E o que determina essa amabilidade? É outro conceito, que a gente chama de ‘teoria da mente’, que é a capacidade que eu, você e todo ser humano temos de simular dentro de nós o estado afetivo de outra pessoa e o estado cognitivo. Em outras palavras, é o tanto que eu consigo simular dentro da minha cabeça, como o outro está sentindo e o que o outro está pensando. Tem a ver com a empatia também, que é a capacidade de sentir aquilo que o outro sente”, explica.
Nesse sentido, o psiquiatra aponta que pessoas que têm uma boa capacidade com a teoria da mente – aquelas que conseguem teorizar dentro delas o que o outro está sentindo – são amáveis e têm um nível de empatia muito grande. Por terem a tendência de se colocar no lugar dos outros, podem sentir que a própria felicidade é desproporcional ao sentimento alheio. De acordo com Bruno Brandão, é como se fosse injusto desfrutar de algo positivo enquanto outras pessoas enfrentam adversidades. “Isso muitas vezes é reforçado por crenças familiares que, muitas vezes, podem reforçar a ideia de que felicidade deve ser algo contido ou que é egoísta demonstrar felicidade enquanto outras pessoas estão sofrendo”, afirma.
O psicólogo Cláudio Paixão, professor do curso de ciência da informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pontua também que a culpa por estar feliz pode vir acompanhada de um sentimento de não merecimento dessa felicidade. “Tem muita gente que se sente culpada porque está feliz, porque as pessoas sempre disseram a elas que elas eram pessoas medíocres, repulsivas, incompetentes, que não eram boas pessoas, e aí elas incorporaram isso. Então, elas têm na cabeça uma ideia de que precisam sofrer ou pagar alguma coisa porque elas não são boas. E aí, quando algo de bom acontece para elas, não conseguem lidar com isso e se sentem culpadas”, elucida.
Pode haver também, segundo o psicólogo, um sentimento de dívida com as outras pessoas que estão em sofrimento, fazendo com que o indivíduo não consiga usufruir das benesses que recebeu. “Esse é um sentimento que, por um lado, tem uma característica interessante. Se a pessoa, por exemplo, tem duas blusas e a outra, nenhuma, e está sentindo que não consegue usufruir da alegria por esse motivo, isso pode mobilizá-la a, de alguma forma, tentar ajudar a outra”, observa.
Mas há também um lado mais preocupante nesse sentimento de culpa, principalmente quando ele paralisa as pessoas. “A pessoa está feliz, está vivendo bem, mas, por ela ter uma alta amabilidade, começa a se culpar e muitas vezes fica paralisada, ela suprime a felicidade. A pessoa não consegue aproveitar momentos de alegria e vive num estado constante de autossabotagem, que pode gerar também autopunição e fazer com que ela evite momentos de prazer. É como se ela boicotasse o próprio bem-estar para ‘compensar’ o sofrimento alheio”, ilustra Bruno Brandão. “Isso prejudica a saúde mental, gerando muitas vezes quadros de ansiedade, depressão, sentimentos de inutilidade e de ser uma pessoa ruim”, acrescenta.
Além disso, o psiquiatra explica que essa situação pode afetar os relacionamentos, já que a pessoa pode evitar compartilhar notícias boas por medo de magoar outras. “Isso muitas vezes vai limitar a conexão social verdadeira com o outro”, destaca. O psiquiatra ainda pontua que, quando excessiva e infundada, a culpa pode levar a um sofrimento emocional gigantesco. “A culpa é importante quando, de fato, ela vai reparar um dano social ou fazer você refletir, não cometer aquilo novamente, mas ela pode ser altamente prejudicial em pessoas que já têm uma tendência a naturalmente se sentirem culpados”, complementa.
Há, porém, uma maneira de equilibrar a sensibilidade com a situação do outro e a própria sensação de felicidade. “O primeiro passo é reforçar, ter a consciência de que a felicidade não é algo limitado, finito. A sua alegria, o seu bem-estar, não reduz a alegria e o bem-estar dos outros. Não é porque você está feliz que o outro vai ficar triste. A pessoa muitas vezes entra nesse sentimento de culpa como se ela estivesse roubando a felicidade do outro, mas o que acontece é o contrário. Se a pessoa tem uma sensação crônica de bem-estar, a tendência é que ela passe essa energia para as outras pessoas. Nós temos neurônios-espelho, que captam o estado afetivo do outro. Existe um conceito chamado ‘irradiação afetiva’, que fala sobre a gente transmitir para o outro o nosso estado emocional. Pessoas de bem com a vida tendem a gerar esse estado afetivo no outro”, explica Bruno.
A prática da empatia ativa, que é a transformação do que você sente em relação ao outro em forma de ajuda, apoio emocional, é outra dica dada pelo psiquiatra Bruno Brandão. Além disso, ele destaca a importância de estabelecer limites emocionais, entendendo que o sofrimento do outro nem sempre é uma responsabilidade direta da pessoa.
Praticar autorreflexão e buscar entender o que está por trás dos sentimentos de culpa também é um exercício que pode ser praticado. “Muitas vezes as pessoas não questionam os pensamentos delas. Quais são os elementos positivos? Quais são os elementos, as evidências que, de fato, comprovam que eu tenho culpa pelo sofrimento do mundo? Quais são as evidências que comprovam que eu não tenho culpa? Fazer uma autocrítica para não deixar esses pensamentos no piloto automático”, orienta.
Claudio Paixão aconselha também que as pessoas demonstrem a gratidão pelas outras e por aquilo que têm na vida. “Uma forma muito saudável de ser grato à vida é dizer às pessoas que lhe são caras o quanto elas são caras, que elas são importantes. Dizer às pessoas que a gente ama o tanto que a gente ama essas pessoas. Isso, de alguma forma, vai minimizar algum possível sentimento de você não ser merecedor daquela felicidade, porque com certeza as pessoas vão virar e falar assim: ‘Cara, a gente também gosta de você’”.
Mas se o sentimento de culpa estiver muito intenso, a orientação é procurar ajuda de um profissional. “Se for uma pessoa que estiver experimentando quadro de ansiedade, quadros deprimidos, buscar ajuda profissional, buscar ajuda psiquiátrica, buscar ajuda psicológica pode ser extremamente importante”, conclui Bruno Brandão.
FONTE: O TEMPO