
Vinte anos se passaram desde a estreia de Batman Begins, o primeiro filme da aclamada trilogia de Christopher Nolan sobre o Cavaleiro das Trevas. No entanto, se o longa fosse lançado hoje no Brasil, sua relevância seria ainda maior, dada a perturbadora semelhança entre nossa realidade e Gotham City, uma cidade que transcende o papel de mero cenário, tornando-se um personagem central na trama.
Há uma cena em que o então detetive Gordon, ainda não comissário, presencia seu parceiro retornando ao carro após aceitar propina. O colega o adverte de que sua integridade está incomodando os demais policiais, sugerindo que ele também participe do esquema. Gordon, em sua perplexidade, questiona: “E a quem irei denunciá-los numa cidade tão profundamente corrompida?” Isso é tão Brasil que poderia constar em um documentário sobre a realidade nacional.
Para ilustrar, consideremos fatos recentes. Há poucos dias, operações policiais desvelaram a infiltração da facção criminosa PCC em pelo menos 15 grandes setores da economia formal brasileira. Visto que nossas instituições públicas têm se mostrado fragilizadas pela corrupção até suas raízes, como o Mensalão e o Petrolão expuseram, torna-se difícil crer que o PCC não esteja igualmente entranhado nos mais altos escalões dos poderes da República. E como é possível depositar confiança nessas mesmas instituições quando a emblemática Operação Lava-Jato, ao se aproximar desses níveis superiores, foi sumariamente desmantelada, sem pudor algum?
E como não inserir neste panorama a maneira pela qual o Supremo Tribunal Federal tem atuado “fora da normalidade” para tentar afastar do cenário público uma vertente política, mas sem demonstrar sequer 1% desse ímpeto para combater o crime organizado? Diante desses cenários, não é difícil imaginar os indivíduos íntegros do país (que existem e, talvez, não sejam minoria, mas que carecem de poder de ação efetivo) repetindo a pergunta de Gordon.
Ordem, justiça, esperança e vigilância
Batman Begins narra a gênese de Bruce Wayne como Batman, depois do seu trauma de infância e sua busca por uma forma de combater a injustiça que corroía Gotham. Ele descobre que o medo é a arma mais poderosa, tanto para o criminoso quanto para o justiceiro. Nolan constrói uma história que é menos sobre um super-herói e mais sobre a necessidade de termos símbolos poderosos de ordem, justiça, esperança e vigilância. O filme explora como os símbolos são forjados e o poder que exercem sobre a psique coletiva.
Nós brasileiros compreendemos bem essa carência de referenciais simbólicos. Tal anseio explica o sucesso estrondoso do Capitão Nascimento, protagonista de Tropa de Elite: na ficção, finalmente surgia alguém que enfrentava o crime até mesmo dentro das próprias fileiras policiais. Não por acaso, tempos depois, o país vislumbraria na figura do juiz Sérgio Moro uma materialização desse ideal de Justiça. Em grande parte, o ministro Alexandre de Moraes também se concebe como tal na atualidade, ainda que, para ao menos metade da população, ele seja percebido mais como um vilão.
É interessante estabelecermos uma dialética analógica entre essas figuras nacionais e o personagem Harvey Dent, o promotor de justiça do segundo filme da trilogia, intitulado O Cavaleiro das Trevas (2008). Dent só alcança seu sucesso e suas conquistas porque o Batman, em um primeiro momento, já havia demonstrado ser possível enfrentar o crime e estabelecer uma ordem mais equitativa na cidade. Contudo, Dent se consome em sua obstinação pela justiça, metamorfoseando-se no vilão Duas-Caras, que transforma a vingança em sua própria versão de retidão. Ao final, Batman se sacrifica, assumindo a pecha de vilão, na tentativa de salvaguardar o ideal de Justiça que Dent simbolizava.
O ator britânico Christian Bale foi o escalado para encarnar Batman na trilogia de Nolan (Foto: Divulgação Warner)
Essa estratégia funcionou, ao menos por alguns anos. Com a aprovação da “Lei Dent”, o crime foi subjugado, e um período de aparente tranquilidade e equidade se instalou. É sob essa premissa que O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), o terceiro filme, se inicia, com um Batman aposentado, aparentemente desnecessário. Todavia, como nenhuma retidão pode se sustentar sobre a base de mentiras, quando a verdade vem à tona, a consequência é o profundo descrédito do referencial encarnado por Dent, a disseminação da desesperança entre a população e um retorno ao ponto de partida da trilogia, com Gotham sendo completamente dominada pelo crime e o caos. Um paralelo com o Brasil que dispensa qualquer explicação adicional.
Na ficção, entretanto, o Batman ressurge para restaurar a ordem em Gotham. No fim, Bruce Wayne consegue consolidar o ideal que almejava, com Batman se emancipando e tendo seu legado assumido por John Blake (uma fusão dos três Robins dos quadrinhos), o policial sugerido como o próximo Cavaleiro das Trevas.
Neste ponto, porém, a analogia entre Gotham e o Brasil parece se tornar insustentável. Não nos faltam “Duas-Caras”, e os pretensos “Batmans” acabam ficando parecidos também com “Duas Caras”. A probabilidade de justiça e ordem é mais do que remota, com a desconfiança nas instituições tornando-se a regra entre soluços de ilusão. Nem o Capitão Nascimento resistiu, sendo cooptado pelo sistema em Tropa de Elite 2.
O caos puro a ser evitado
Contudo, há um elemento adicional na trilogia que merece destaque, talvez mais crucial do que a mera existência de heróis ou emblemas de retidão e ordem. O símbolo mais acabado na obra é o do Coringa, a personificação do caos puro. Ele surge no segundo filme, sem uma origem explícita, e não possui outro propósito que não seja a aniquilação da ordem e da justiça que a presença do Batman simboliza. É a antítese perfeita, o caos pelo caos.
O Coringa manifesta uma convicção tão inabalável em sua filosofia niilista, considerando a ordem uma farsa e a moralidade, uma convenção frágil, que lhe confere uma força avassaladora, a mais potente, capaz de instigar pavor até nos criminosos e dominar a todos. Há um ponto em que ele parece invencível, indomável por qualquer estrutura, mesmo a do submundo do crime. A cena mais icônica disso ocorre quando Batman acredita tê-lo derrotado, apenas para se ver impotente diante da iminente consumação do caos: refiro-me à sequência dos explosivos posicionados em dois barcos repletos de passageiros, com os respectivos detonadores trocados entre as embarcações. A lógica era simples: os ocupantes de cada barco poderiam explodir o outro, salvando a si mesmos.
Nesse momento derradeiro, não há lei, não há instituição, não há polícia, nem herói capaz de deter o caos. A única salvaguarda reside na consciência moral de cada pessoa, confrontada com o dilema supremo: escolher a morte em vez de assassinar o próximo. O Coringa, com seu profundo desprezo pela natureza humana, não duvidava que ao menos um dos barcos explodiria. Estava convicto de que o homem comum, quando empurrado ao limite, revelaria sua verdadeira face egoísta e violenta. Mas, de forma surpreendente, isso não acontece. Apesar do terrível dilema e da tentação de alguns em acionar o detonador, a explosão é evitada. Nem o barco com pessoas comuns, nem aquele unicamente com presidiários, cede à barbárie.
A trilogia do cineasta Christopher Nolan chegou ao fim em 2012 (Foto: Divulgação Warner)
O Coringa, assim, é finalmente vencido. O caos foi contido não pela ação de super-heróis ou por grandes proezas, mas pela silenciosa e poderosa resistência do indivíduo comum ao mal. É de exemplos como este que precisamos em nossa realidade, mais do que de Batmans e de todos os arquétipos heroicos concebíveis pela imaginação humana.
Talvez seja essa a mais profunda mensagem que a trilogia de Nolan tem a oferecer: em um contexto onde as instituições falham e os símbolos heroicos se revelam frágeis, impotentes ou corrompidos, a verdadeira esperança reside na inextinguível chama da consciência moral individual. A arte, neste sentido, não apenas reflete nossas crises e dilemas, mas nos convoca à reflexão, alimentando o imaginário com exemplos de resiliência moral recusando-se a cair no abismo em que toda a estrutura externa parece enraizada.