No limite: 40% dos médicos do país sofrem com transtorno mental

No limite: 40% dos médicos do país sofrem com transtorno mental, e situação é percebida em MG

Artur Oliveira Mendes é médico de família e comunidade e trabalha há 20 anos atendendo pacientes em BH Foto: Daniel de Cerqueira/ O Tempo -

Durante um dia comum de consultas, o médico de família e comunidade Artur Oliveira Mendes, de 46 anos, foi informado que dois colegas estavam afastados por problemas de saúde e que teria que atender sozinho um grande número de pacientes, que lotavam a sala de espera. Minutos depois, as consultas foram interrompidas pela chegada de uma paciente idosa, em estado grave, necessitando de toda atenção do médico. Enquanto o profissional corria contra o tempo para salvar uma vida com poucos recursos, pessoas em sofrimento reclamavam da demora do atendimento e parentes gritavam com funcionários e ameaçavam invadir a sala de urgência. 

O cenário de pressão vivido por Artur, que também é o diretor do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais ( Sinmed-MG), é frequente na rotina de médicos do Estado e tem levado ao adoecimento mental de muitos profissionais da saúde. Dados do estudo de “qualidade de vida dos médicos”, realizado pela Afya, mostram que 40% dos médicos podem desenvolver transtornos psicológicos no Brasil.

“São vários (momentos de maior estresse), ao menos uma vez por semana. É uma realidade de toda a classe médica. Em alguns momentos ultrapassa o limite do suportável, e então o profissional pode adoecer também. Estudos diversos têm demonstrado que os médicos têm adoecido muito, tendo sofrido de forma ímpar com problemas de saúde mental”, desabafa o médico e diretor do Sinmed-MG. 

Assim como Artur, vários outros médicos do Estado são submetidos constantemente a situações de pressão e estresse que, associadas às baixas condições de trabalho, com falta de profissionais e sucateamento de hospitais, levam ao esgotamento do profissional e, muitas vezes, ao desenvolvimento de quadros de transtornos mentais. Mulheres são a maioria afetada, sendo duas a cada três profissionais afetados. “É uma situação frequente ver os colegas cansados. Não é à toa o flagrante abuso de medicamentos para saúde mental e afastamentos por adoecimento entre médicos. Isso vem piorando”, afirma o médico de família e comunidade, que trabalha há 20 anos atendendo pacientes em Belo Horizonte.

Segundo dados da pesquisa Afya, metade dos profissionais na faixa etária dos 25 aos 35 anos sofre com transtornos psicológicos. Entre os principais diagnósticos estão doenças como ansiedade (33,5%), depressão (22,1%) e burnout (6,7%). O levantamento revelou ainda que cerca de 3,6% dos médicos já esteve internado para  alguma condição mental e precisou ficar afastado por até cinco semanas nos últimos 12 meses.

Para o coordenador do Fórum Nacional de Serviços de Apoio em Escolas Médicas (FORSA), Sérgio Baldassin, os desafios para os profissionais começam antes mesmo de eles se formarem. O alto nível de dificuldade para entrar no curso de medicina e as duras exigências no decorrer dos anos de estudo são alguns dos fatores que já podem pesar na mente de muitos alunos. “Eles enfrentam muitas dificuldades. É uma exigência grande o tempo todo. É preciso haver resiliência e capacidade de adaptação”, diz ele.

Quando vão para o dia a dia de trabalho, vem mais desafios. Baldassin lembra que muitos médicos enfrentam episódios de violência e assédio. Além disso, a cobrança, agora, vai além de saber diagnosticar doenças e adquirir conhecimento. Muitos profissionais são pressionados a realizar atendimentos rápidos —de até 10 minutos —em uma lógica que privilegia a quantidade. Também enfrentam, muitas vezes, a falta de recursos para atuarem. “Isso é totalmente contra produtivo”, diz Baldassin.

Problemas estruturais

Conselheiro do Conselho Regional do Estado de Minas Gerais (CRM-MG), Paulo Roberto Repsold destaca que, para além das altas exigências com os estudos, residências e atendimentos, os médicos no país enfrentam problemas estruturais. Fatores que contribuem para problemas de saúde mental na profissão também vêm das próprias condições do Brasil. E, segundo ele, isso é bem mais difícil de resolver. 

Em BH, o sucateamento de hospitais tem superlotado as duas principais unidades de atendimento de emergência nas últimas semanas. No pronto-socorro João XXIII, o centro-cirúrgico foi sobrecarregado após o Hospital Maria Amélia Lins (HMAL), na região Centro-Sul de Belo Horizonte, fechar o bloco cirúrgico devido a quebra do intensificador de imagens e de outros equipamentos essenciais para cirurgias. Já o Risoleta Neves fechou as portas, no dia 22 de janeiro, para novos pacientes, por 24 horas, depois de uma superlotação, agravada pela suspensão das cirurgias ortopédicas eletivas em sete unidades de saúde da rede SUS-BH. Problemas de estrutura também afetaram o Hospital Governador Israel Pinheiro (HGIP), do Ipsemg, que suspendeu exames de ultrassom depois que um ar-condicionado estragou, e o Hospital da Baleia, na região Leste, que também passou a operar no limite.

Para o ortopedista Diogo Sabido, de 42 anos, as dificuldades relacionadas às más condições estruturais, de gestão e de acompanhamento, associadas a problemas como agressões verbais, cometidas por pacientes insatisfeitos, criam um sentimento de frustração na categoria. “A sensação de impotência é enorme e a frustração com a carreira é um sentimento que muitos levam consigo. Acho que não conheço nenhum médico que não se considere cansado com a carreira”, revela o profissional. 

Na avaliação de Repsold, esse é um cenário difícil de reverter. “O país precisa evoluir mais, ter uma melhor assistência à saúde, dar condições melhores de trabalho. Não é algo simples. Passa por gestão, evolução do Brasil, cenário internacional”, diz Repsold, que completa com a importância de uma carga horária menor e uma melhor remuneração.  “Mas isso não é algo fácil em um país de dimensões condicionais como o nosso. O exercício da medicina é diferente, de acordo com o lugar em que o profissional está”, afirma.

Repsold ressalta que muitas vezes as pessoas consideram um médico “incompetente”, mas não há a compreensão de onde ele se encontra e os recursos que tem para exercer o seu trabalho. “Há médicos atuando em cidades de 10, 15 mil habitantes, em hospitais que internam apenas para coisas simples. Para algo maior, precisam enviar o paciente para uma cidade grande. É um cenário complexo que precisam enfrentar”, conclui.

Sem saúde para si, sem saúde para os outros

Embora sejam profissionais da saúde, há um grande número de médicos que cuidam dos pacientes, mas não de si mesmos, segundo Baldassin. Esse é mais um elemento que agrava a situação, tanto deles, quanto da população em geral, segundo o  coordenador do Fórum Nacional de Serviços de Apoio em Escolas Médicas. Ele lembra que, apesar de terem conhecimento aprofundado sobre a saúde humana, nem sempre os profissionais o utilizam para si. Vão deixando “para depois” até que, em alguns casos, a situação fique insustentável.

“Quando um médico cuida da própria saúde, ele erra menos, sofre menos processos. E ele precisa se cuidar para ser bom profissional, bom comunicador”, afirma.

Baldassin lembra que essa falta de cuidado reflete no próprio atendimento dos médicos e traz consequências para a saúde como um todo. “Temos a obrigação de ensinar o autocuidado ao médico, o que reflete na segurança do paciente. Assim, ele vai aprender a olhar o paciente, ver se ele está triste, exaltado, cansado, alegre demais… Se o médico está chateado, ele chega e não olha a pessoa, não dá o seu máximo no atendimento, não faz perguntas detalhadas”, conclui.

Mulheres afetadas

Dados da Demografia Médica divulgada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no ano passado mostram que há 575.930 médicos no Brasil, sendo que 49,92% (287.457) são mulheres. Apesar de o número praticamente se igualar ao masculino, elas enfrentam ainda mais desafios, conforme destaca o presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), Raul Canal. Muitas vezes, elas são as maiores vítimas de violência por parte dos pacientes, além de receberem menos. 

“A mulher já costuma começar em desvantagem já que normalmente tem duas jornadas: uma no trabalho e outra em casa. Além disso, ela muitas vezes é discriminada, tem a remuneração mais baixa, sofre violência no trabalho”, diz Canal.

Ele lembra que muitos pacientes já buscam atendimento médico estressados e descontam isso nos profissionais. Quando esse profissional é uma mulher, a descarga pode ser ainda maior. “Elas costumam ser mais suscetíveis a esse tipo de violência”, afirma ele, que destaca a importância de valorizar mais o trabalho feminino.

FONTE: O TEMPO