Da novela para a vida real: mães de 10 a 19 anos tem dois filhos por hora em Minas Gerais

Gravidez na adolescência reflete desigualdades sociais e falta de diálogo sobre sexualidade; histórias de acolhimento mostram novos caminhos possíveis

- Marcely Sophia, de 18 anos, grávida de seis meses, contou que o início da gestação foi marcado por muitas incertezas Foto: Flávio Tavares / O TEMPO

A nova novela das nove da Rede Globo, Três Graças, acompanha a trajetória de três gerações de mulheres unidas pelo vínculo da maternidade na adolescência: a matriarca Lígia, sua filha Gerluce e a neta Joélly. A trama retrata os desafios enfrentados por jovens mães, destacando a importância do apoio familiar, a superação de obstáculos e a busca por melhores condições de vida. Mais do que ficção, Três Graças reflete uma realidade ainda presente na vida de muitas mineiras. Entre janeiro e 21 de agosto de 2025, foram registrados 12.082 nascimentos de bebês cujas mães têm entre 10 e 19 anos — o equivalente a 51 por dia, ou dois a cada hora, em Minas Gerais. Por trás de cada número, há trajetórias marcadas por surpresa, medo e adaptação.

Uma dessas histórias é a de Thamara Sanches, de 25 anos, que se tornou mãe aos 13 e hoje tem uma filha de 12. A descoberta da gravidez transformou completamente sua vida. “Precisei amadurecer cedo, conciliando os estudos, o trabalho e a maternidade. Foi difícil, mas consegui me formar e continuar crescendo. Nos relacionamentos, senti muito julgamento, o que me fez ficar mais reservada e focada na minha filha”, contou. Para ela, o apoio da família foi decisivo. “Tive bastante apoio da minha família, que me ajudou a cuidar dela (filha) para que eu pudesse estudar e trabalhar. Esse suporte foi essencial”, relembra.

Na época, Thamara cursava o ensino fundamental e conciliava a maternidade com o trabalho. Para sustentar a filha, atendia clientes como cabeleireira e vendia produtos, enquanto sua mãe cuidava da pequena Ana. “Estudava de manhã, e minha mãe ficava com a minha filha. Quando chegava em casa, amamentava e dava todo o suporte de que ela precisava. Fazia atendimentos a domicílio como cabeleireira e também trabalhava como sacoleira”, relembra.

Para a socióloga Antonia Montenegro, professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas, os dados sobre nascimentos de mães adolescentes revelam uma situação que requer políticas públicas efetivas. “Quando se observa o quadro de nascidos vivos em Minas Gerais até agosto de 2025, nota-se que 9% são filhos de mães adolescentes, na faixa etária de 10 a 19 anos. Esse percentual é extremamente significativo, pois estamos falando de meninas e jovens que, em muitos casos, ainda não têm maturidade suficiente para assumir uma responsabilidade dessa dimensão”, explica.

Segundo a professora, a gravidez na adolescência está diretamente ligada a fatores sociais, econômicos e educacionais. “As implicações da maternidade precoce são amplas. Uma delas é o abandono escolar, já que muitas dessas jovens ainda estão no ensino fundamental ou médio. Quando se tornam mães, podem interromper os estudos, o que gera defasagem e reduz as oportunidades futuras”, observa.

Antônia ressalta que, além da defasagem educacional, a falta de renda e o pouco acesso a creches agravam o cenário de vulnerabilidade. “Essas mães precisarão trabalhar, mas nem sempre terão onde deixar os filhos. E muitas vêm de famílias de baixa renda, o que torna ainda mais difícil sustentar uma criança. Em muitos casos, é quase como uma criança criando outra criança”, destaca.

A especialista acrescenta que a falta de diálogo dentro das famílias também é um dos fatores que contribuem para a maternidade precoce. “Mesmo com acesso à informação, muitas adolescentes não recebem orientação adequada sobre sexualidade dentro de casa. A conversa sobre prevenção ainda é um tabu”, afirma. Para ela, a ausência desse diálogo torna as jovens mais expostas a riscos físicos e emocionais. “O corpo da adolescente ainda está em formação e, quando não há orientação, a iniciação sexual acontece sem clareza sobre os riscos, tanto físicos quanto emocionais”, acrescenta.

Consequências emocionais

Além dos impactos sociais, a maternidade precoce pode trazer desafios emocionais, alerta a psicóloga e especialista em Neurociências Letícia Rezende. “As jovens enfrentam medo e insegurança diante do futuro, preocupadas com a reação do parceiro à gravidez e com as novas responsabilidades. Isso inclui cuidados emocionais, como educar e criar o bebê, e também responsabilidades financeiras, como comprar o enxoval e garantir a saúde da criança”, explica.

Algumas dessas incertezas passaram a fazer parte da vida da manicure Isabela Debelli, de 18 anos, há mais de um ano. O filho da jovem nasceu há seis meses, após uma gestação tranquila, apesar do abalo psicológico. “O mais difícil foi o lado emocional. As pessoas romantizam muito a gravidez, mas não é fácil. A gente sente desconforto o tempo todo”, relatou.

A notícia da gravidez foi uma surpresa para Isabela e sua família. “Foi um susto, claro, mas acho que consegui lidar bem com a situação. Chorei bastante no começo, mas, graças a Deus, tive muito apoio da minha família, da minha mãe e do pai do meu bebê”, disse.

A assistente fiscal Raquel Lima, de 42 anos, passou por uma experiência semelhante: as dificuldades durante a gestação foram emocionais e psicológicas. “Eu tinha 14 anos e não entendia direito o que estava acontecendo. Ao mesmo tempo, lidava com o silêncio do meu pai, com as brigas em casa e o desprezo do genitor. Foi um período muito pesado. O pai do meu filho dizia que não ia me ajudar, que eu teria que me virar, que não queria casar. A gente namorava escondido, e eu nem sabia que ele também se relacionava com outra pessoa. Foi muito difícil lidar com tudo isso sozinha”, contou.

Ela lembra ainda dos impactos que a maternidade precoce trouxe para sua vida pessoal e profissional. “Depois que tive meu filho, meu pai voltou a falar comigo e, aos poucos, as coisas foram se ajeitando. Terminei o ensino médio e, mais tarde, consegui fazer faculdade. Não vejo isso como algo negativo, porque acho que tudo acontece na hora certa. O que mais me marcou foram os relacionamentos, fiquei com medo de me envolver, medo de engravidar de novo e até de sofrer sentimentalmente. Isso me deixou com traumas e sem vontade de ter mais filhos”, relatou.

Mesmo com as dificuldades, Raquel ressalta que o amor pelo filho é incondicional, mas faz um alerta para outras jovens. “Eu não desejo que nenhuma adolescente passe por isso. A maternidade é uma responsabilidade para a vida inteira. Por mais que o filho cresça bem, é algo que muda toda a nossa rotina e exige estrutura emocional e financeira. Muitas vezes o parceiro não apoia, e a sociedade julga. Então eu diria para as jovens: pensarem muito bem antes. Hoje existem informações, redes sociais, métodos de prevenção e também o risco das doenças. É importante se cuidar”, afirmou.

Importância do acolhimento e da rede de apoio 

Para lidar com os desafios da maternidade na adolescência, a psicóloga Letícia Rezende destaca que o acolhimento é fundamental. Sem esse afeto, a experiência pode se tornar um fardo. “A rede de apoio é essencial, pois ajuda na elaboração da gestação e na adaptação à nova realidade. É importante que esse suporte venha com acolhimento, incentivo à autoestima e promoção do bem-estar — tanto durante a gravidez quanto depois —, contribuindo também para prevenir transtornos mentais”, explica.

À espera de uma menina, Marcely Sophia, de 18 anos, grávida de seis meses, conta que o início da gestação foi marcado por muitas incertezas. “Foi bem desafiador. Não é uma coisa fácil, porque a gente pensa em estudar, trabalhar… e, quando vem, é uma surpresa. Eu havia começado a faculdade de fisioterapia e tinha acabado de entrar na empresa, então foi muito complicado”, relembra.

A jovem Marcely Sophia, de 18 anos, que está grávida de uma menina. Foto: Flávio Tavares / O TEMPO

O apoio da família tem sido essencial para que a jovem consiga lidar com as mudanças. “Minha família tem me ajudado muito, principalmente nos momentos em que acho que tudo vai desabar. Eles têm sido meu suporte em tudo: desde as roupinhas até o cuidado com a minha saúde. Está sendo fundamental”, afirma.

Mesmo com a rotina intensa, Marcely continua conciliando o trabalho e os estudos. “Trabalhar é o mais difícil. A empresa não aceitou muito bem, e é complicado passar mal, não conseguir mais ficar muito tempo em pé. E ainda tem a parte de estudar, porque eu trabalho o dia todo e chego cansada, mas continuo na faculdade”, relata.

Com o avanço da gestação, ela começou a preparar o quartinho da filha. “Estou organizando o quarto com as coisas que ganhei. Hoje mesmo estou lavando as roupinhas. Já ganhei berço e carrinho”, conta a jovem.

Mesmo com a rotina intensa, Marcely continua conciliando o trabalho e os estudos. Foto: Flávio Tavares / O TEMPO

O caminho da prevenção é a informação 

A ginecologista e coordenadora da Residência de Ginecologia Obstétrica da Rede Mater Dei, Carolina Soares, explica que a gestação na adolescência é um problema global e que pode trazer sérios riscos à saúde. “Nesse período (adolescência), o corpo da mulher ainda não está completamente formado e não possui todos os nutrientes armazenados como o de uma mulher adulta. Os principais riscos são físicos. Há maior chance de complicações devido à imaturidade do corpo, como hipertensão, pré-eclâmpsia, anemia e diabetes gestacional”, disse.

Além dos impactos para a mãe, Carolina também aponta riscos para o bebê. “Se o corpo da mãe ainda não está maduro, há risco de parto prematuro e de restrição do crescimento intrauterino. Não é apenas uma questão cultural, mas biológica — que coloca em risco a vida da mãe e do bebê”, explica.

A falta de informação sobre métodos contraceptivos concorre para o aumento dos casos de gravidez precoce, segundo a especialista. “O nosso problema começa dentro de casa. Muitos pais ainda têm medo de conversar sobre sexualidade, e as escolas, por receio da reação dos pais, também evitam abordar o tema. Assim, a maioria das adolescentes não conhece os métodos contraceptivos nem sabe onde buscar ajuda”, afirma.

A história da assistente Raquel Lima, de 42 anos, reforça esse cenário. Ela engravidou aos 14 anos e relembra o susto que viveu, principalmente pela falta de orientação. “Eu engravidei com 14 anos e tive meu filho com 15. Na época, eu não tinha informação nenhuma. Achei estranho no início, porque nem eu sabia o que estava acontecendo. Hoje as pessoas têm mais acesso às mídias e à tecnologia, mas naquela época era tudo muito diferente. Quando descobri, fiquei assustada, principalmente com a reação da minha família”, contou.

Para Carolina Soares, ampliar o acesso à informação e aos métodos contraceptivos é essencial. Ela lembra que o sistema público oferece opções seguras e eficazes, mas ainda é preciso chegar até as adolescentes. “Ainda falta busca ativa. Precisamos ir atrás dessas adolescentes e promover campanhas, seja em postos de saúde, escolas ou consultórios, sobre a importância de conversar e se informar”, afirma.

Na mesma linha, a socióloga Antônia Montenegro defende que a escola deve atuar junto às famílias na construção da educação sexual. “A educação sexual não é incentivo, é prevenção. É ensinar o adolescente a cuidar do próprio corpo, compreender responsabilidades e fazer escolhas conscientes”, pontua.

Políticas públicas e acolhimento

Segundo a socióloga Antônia Montenegro, a gravidez na adolescência é sempre expressão de algum tipo de vulnerabilidade — seja física, emocional ou social — e, por isso, é fundamental pensar em políticas públicas específicas, mas sem estigmatizar as jovens. “É importante que haja acompanhamento periódico, com profissionais capacitados para conversar sobre os riscos da gravidez precoce e das infecções sexualmente transmissíveis”, explica.

Para ela, o enfrentamento do problema passa pela ampliação dos programas governamentais voltados aos adolescentes. “Programas como o Saúde da Família poderiam incluir de forma mais efetiva os adolescentes. A equipe de saúde, que já acompanha famílias e idosos, poderia ampliar o atendimento e discutir temas como sexualidade, prevenção e saúde reprodutiva com os jovens”, sugere.

A visão é compartilhada pela psicóloga Letícia Rezende, que reforça a importância de oferecer suporte emocional às adolescentes em situação de vulnerabilidade. Segundo ela, é essencial que o atendimento psicológico esteja presente nos locais de maior acesso, como escolas e postos de saúde. “É preciso atuação de psicólogos nas escolas e nos postos de saúde, de forma ágil e acessível. Além disso, oferecer atendimento multidisciplinar a todos os envolvidos na gestação na adolescência e grupos de apoio à maternidade durante a gravidez e no pós-parto”, destaca.

As preocupações levantadas pelas especialistas são trabalhadas pelo governo de Minas, por meio de ações contínuas de prevenção e conscientização sobre a gravidez na adolescência. De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), todos os anos a pasta realiza campanhas durante a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, em fevereiro, com ações nas redes sociais, entrevistas em emissoras públicas e orientações técnicas às Unidades Regionais de Saúde.

Desde 2024, a Coordenação de Ciclos de Vida (CCV) da SES-MG tem ampliado a comunicação sobre o tema e reforçado estratégias educativas voltadas aos jovens. Essas iniciativas se somam ao trabalho permanente desenvolvido pelo Programa Saúde na Escola (PSE), que integra as áreas da saúde e da educação na promoção de ações informativas e preventivas sobre sexualidade e planejamento familiar.

Além disso, a SES-MG informou que o Estado distribui aos municípios diversos métodos contraceptivos, como pílulas, injetáveis e dispositivos intrauterinos (DIU), garantindo acesso gratuito e ampliando a autonomia das adolescentes. As medidas fazem parte da Política Estadual de Atenção à Saúde da Mulher, que tem como objetivo promover a saúde sexual e reprodutiva e reduzir os índices de gravidez não planejada entre jovens.

Em Belo Horizonte, o projeto Colmeia atua há mais de 70 anos no acolhimento e acompanhamento de adolescentes grávidas ou com filhos em situação de vulnerabilidade social. Criada por mulheres ligadas à Arquidiocese de Belo Horizonte, a instituição passou a firmar parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte há cerca de 25 anos, ampliando o atendimento a jovens encaminhadas pelo Conselho Tutelar ou pela Vara da Infância. O projeto garante acesso a serviços de saúde, educação, pré-natal, creche para os filhos e oportunidades de primeiro emprego, além de promover o fortalecimento da convivência familiar e comunitária. O período de acolhimento segue o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, com permanência de até 18 meses — podendo se estender até os 18 anos, quando não há rede familiar de apoio.

Serviço:

Colméia Centro de Educação e Profissão 

Rua Gastão Bráulio dos Santos, 838, Belo Horizonte, MG, Brasil

Telefone: (31)3372 -3693 ou WhatsApp: (31) 98345-5639

FONTE: O TEMPO