“Bobbie Goods”: entenda como colorir pode ajudar a reduzir o tempo de tela

Livro de colorir “Bobbie Goods” ganha destaque como alternativa para desconexão digital. Especialistas explicam como a prática promove mindfulness e equilíbrio emocional

Em meio a um cenário onde adultos passam, em média, sete horas diárias diante de telas (segundo dados de 2023 da Statista), a busca por alternativas para reduzir a exposição digital tornou-se urgente. É nesse contexto que os low energy hobbies (hobbies de baixa energia) ganham força. Definidos pela revista Cosmopolitan como atividades que exigem pouca motivação, mas oferecem satisfação imediata, eles incluem práticas como crochê, quebra-cabeças e, principalmente, livros de colorir para adultos. Entre esses últimos, o Bobbie Goods, criado pela ilustradora canadense Abbie Goveia, emergiu como um fenômeno nas redes sociais, especialmente no TikTok, onde vídeos de usuários destacam benefícios como redução da ansiedade e melhora na qualidade do sono.

Rosângela Domingues, psicóloga clínica, psicanalista e especialista em EMDR. Foto: Arquivo Pessoal

Rosângela Domingues, psicóloga clínica, psicanalista e especialista em EMDR. Foto: Arquivo Pessoal

A psicóloga clínica Rosângela Domingues, especialista em EMDR (terapia de dessensibilização e reprocessamento de traumas), explica que o sucesso dessas atividades está enraizado na neurobiologia. Atividades manuais e repetitivas, como colorir, ativam o sistema parassimpático, responsável pelo relaxamento. Isso reduz a produção de cortisol, hormônio do estresse, e estimula a liberação de dopamina, neurotransmissor ligado à recompensa. “Diferente das redes sociais, que geram picos de ansiedade, o colorir oferece uma gratificação constante e sem sobressaltos”, afirma.

Já o psicólogo e psicanalista Alexandre Brito, doutorando em Psicologia Institucional, destaca o aspecto cultural por trás do fenômeno. A estética ‘fofa’ e infantilizada do Bobbie Goods resgata a nostalgia de um tempo sem cobranças, algo especialmente atraente para adultos sobrecarregados pela produtividade tóxica. “É uma forma simbólica de voltar a um lugar seguro, mesmo que apenas na imaginação”, diz. No entanto, ele adverte: “Nem todos se identificam com essa linguagem. Pacientes com traumas ligados à infância podem reagir mal a desenhos que remetem a uma fase dolorosa. Por isso, é essencial adaptar a atividade ao histórico emocional de cada um”.

Alexandre Brito, psicólogo, psicanalista e doutorando em Psicologia Institucional pela UFES. Foto: Arquivo Pessoal

Alexandre Brito, psicólogo, psicanalista e doutorando em Psicologia Institucional pela UFES. Foto: Arquivo Pessoal

A neurociência oferece explicações concretas para os efeitos terapêuticos do colorir. Rosângela Domingues detalha que a prática envolve três áreas cerebrais: o córtex pré-frontal (responsável pelo foco e planejamento), o sistema límbico (que regula emoções e libera dopamina) e o córtex motor (que coordena movimentos precisos). “É uma forma de mindfulness ativo. Enquanto você escolhe cores e controla a pressão do lápis, a mente se afasta de pensamentos intrusivos, criando uma barreira contra a ruminação mental”, explica. Estudos citados por ela, publicados no Journal of Art Therapy (2021), mostram que 20 minutos diários de atividades manuais reduzem até 30% dos níveis de cortisol em indivíduos com ansiedade moderada.

Alexandre Brito complementa com uma perspectiva psicanalítica: “Colorir é um ato de resistência à lógica utilitarista. Ao dedicar tempo a algo ‘inútil’, o adulto ressignifica seu valor pessoal, desvinculando-o da produtividade. É um exercício de autonomia contra a pressão social”. Enquanto a meditação exige foco interno e introspecção, colorir é uma prática de atenção externa e concretude. Para Brito, essa diferença é crucial. “A meditação prepara o cérebro para atividades manuais ao baixar a frequência das ondas cerebrais. Juntas, elas potencializam o efeito terapêutico. É como calibrar um instrumento antes de tocar”.

No entanto, a prática não é universal. Para perfeccionistas, que buscam resultados impecáveis, colorir pode virar fonte de frustração. Brito compartilha uma estratégia: “Incentivo pacientes a rabiscar fora das linhas ou usar cores absurdas, como um céu roxo. O objetivo é desconstruir a cobrança por perfeição”. Já para quem tem TDAH, Rosângela Domingues recomenda combinar a atividade com estímulos multissensoriais, como músicas binaurais ou aromaterapia, para manter o engajamento. Idosos, por sua vez, beneficiam-se de temas personalizados, como paisagens de cidades onde viveram, que estimulam reminiscências positivas.

Ambos os especialistas alertam: colorir não substitui terapia. “Se a pessoa usa a atividade para fugir de problemas, como faz com as telas, vira uma muleta. É preciso diferenciar autocuidado de evasão”, afirma Brito. Rosângela reforça: “Em casos de depressão ou ansiedade severa, intervenções profissionais são indispensáveis. Colorir sozinho não resolve traumas profundos”.

Grandes empresas, como Google e Microsoft, já adotaram workshops de colorir em programas de bem-estar. Domingues, que implementou projetos semelhantes, explica: “Em grupos, a atividade quebra hierarquias. CEOs e estagiários pintam lado a lado, criando um espaço de igualdade. Trocar desenhos estimula colaboração”.

Enquanto o sucesso do Bobbie Goods é associado a tendências como o cottagecore (estética rural idealizada), Brito defende seu valor terapêutico: “Não importa se é moda. Se ajuda alguém a se reconectar consigo mesmo, cumpre um papel legítimo”. Domingues, porém, ressalva: “Evite o consumo excessivo. Comprar dez livros e não usar nenhum alimenta a mesma ansiedade que queremos combater”.

Para começar, os especialistas sugerem escolher temas que dialoguem com memórias pessoais, experimentar materiais não convencionais, como giz de cera, e criar rituais sem neurose — 15 minutos após o jantar, por exemplo. “Abrace o inacabado. Deixe páginas pela metade: é um lembrete de que a vida não precisa ser perfeita”, conclui Brito.

FONTE: ESTER TAVARES- ES360