A dose faz o veneno? Aumento de episódios de intoxicação por suplementos acende alerta

Especialista fala sobre os riscos de se tomar indiscriminadamente substâncias que, em muitos casos, visam acelerar ganhos ao organismo em função da estética

- A dose faz o veneno? Aumento de episódios de intoxicação por suplementos acende alerta Foto: iStockphoto/Divulgação

Foi o médico suíço Paracelso que, no século XV, cunhou a frase que se transformou em uma máxima do pensamento ocidental: “A dose faz o veneno”. Ou seja, para além dos componentes propriamente ditos, é necessário medir precisamente a quantidade para se garantir que algo em tese feito para o bem não vai se transformar em um terrível mal.

Essa ideia tem voltado à tona com a moda das vitaminas e suplementos alimentares que visam ganhos físicos ao organismo, muitas vezes passando por cima de procedimentos mais naturais e que exigiriam maior tempo e paciência das pessoas. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), desde 2024 foram registradas 240 notificações de efeitos adversos causados por suplementos vitamínicos, sendo 28% deles graves. No mesmo período, mais de 62 mil anúncios irregulares destes suplementos foram removidos da internet.

A indústria de suplementos movimenta mais de R$4 bilhões por ano no Brasil e muitos desses produtos são vendidos sem qualquer comprovação científica. Casos como o da empresária baiana Perinalva Dias, que ficou 28 dias em coma após intoxicação por vitamina D, acendem o alerta sobre a banalização do uso dessas substâncias, e como a lógica publicitária e o interesse financeiro das grandes indústrias interferem de maneira negativa em uma questão que deveria ser de saúde. 

A nutricionista Silvia Hespanha faz coro à máxima secular de Paracelso. “Qualquer nutriente pode ser benéfico quando é necessário para o corpo em doses fisiológicas, e passa a ser nocivo quando a dose ultrapassa a capacidade do corpo de processá-lo. Suplementos vendidos sem receita e rotulados como ‘naturais’ não eliminam riscos. Além da dose, a interação entre vários suplementos ou com medicamentos, e a vulnerabilidade individual, relacionada à idade, doença renal e gravidez, determinam o dano. Gosto sempre de falar que suplemento é complemento. Eu só utilizo quando há necessidade real. Primeiro avaliamos o paciente, identificamos a possível carência e a confirmamos através de exames laboratoriais. A partir daí, indicamos suplementos de forma pontual e direcionada”, orienta. 

Riscos

Ela detalha os riscos em relação às vitaminas. “As vitaminas hidrossolúveis, como a vitamina C e as do complexo B, são eliminadas com mais facilidade pela urina. Por isso, o risco de intoxicação é menor, embora doses muito altas e contínuas também possam causar efeitos indesejáveis, como gastrointestinal, ou, no caso da B6, formigamentos. Já as vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K) são diferentes, elas ficam armazenadas no fígado e no tecido adiposo. Como o corpo não consegue eliminá-las rapidamente, o excesso vai se acumulando e pode virar toxicidade”, alerta. 

Silvia enumera alguns sinais práticos de que o corpo está saturado dessas vitaminas, como “pele descamando, queda de cabelo, dor de cabeça, náuseas e aumento das enzimas do fígado”, no caso da vitamina A; “sede excessiva, náuseas, fraqueza, constipação e dor abdominal”, no caso da vitamina D; “sangramentos e hematomas” em relação à vitamina E; e “alterações na coagulação” para a vitamina K. 

“Na minha prática clínica, o que mais me ajuda é observar o conjunto. São os sintomas novos, mais o uso recente de suplementos e a dosagem elevada em exames laboratoriais. Quando esses três se encontram, quase sempre estamos diante de toxicidade e não de deficiência”, diferencia a especialista.

Silvia observa que suplementos como Whey protein, o mais consumido no mercado, aliado ao alto consumo de proteínas, pode gerar, em indivíduos com doença renal preexistente, “um agravamento da função renal”, enquanto, em pessoas saudáveis, “a maioria das evidências mostra baixa probabilidade de dano se usadas em doses recomendadas”. “Ainda assim, casos de lesão ocorrem quando combinados com outros fatores, como desidratação e uso de várias fórmulas”, pontua. 

A creatina, hoje amplamente estudada, é considerada “geralmente segura para adultos saudáveis nas doses usuais de 3 a 5 gramas ao dia”. “Entretanto, há relatos de casos isolados de lesão renal ou piora em contextos de uso excessivo sem acompanhamento, ou em pessoas com risco preexistente. A hidratação adequada é chave para conter esses riscos”, pondera. Já os polivitamínicos e multi-ingredientes “podem provocar lesões hepáticas e sobrecarga renal, com elevação de marcadores dependendo dos compostos”. “Há séries de casos de hepatotoxicidade (lesão ou inflamação do fígado) atribuída a suplementos multi-ingrediente”, alerta a nutricionista. 

Precauções

Há ainda os chamados pré-treinos e termogênicos, que frequentemente contêm estimulantes concentrados, como cafeína em altas doses, sinefrina, yohimbina, e, por vezes, até substâncias proibidas como DMAA (dimetilamilamina), além de “proprietary blends” (combinações de ingredientes) de dose incerta.

Silvia chama atenção para os riscos ao exceder a dose recomendada no uso dessas substâncias, que incluem “palpitações, taquicardia, hipertensão, arritmias, síncope e aumento do risco de eventos isquêmicos em pessoas suscetíveis”. “Além disso, podem precipitar ansiedade, insônia, crises hipertensivas, e, em casos raros, rabdomiólise (destruição das fibras do músculo esquelético) e arritmias sérias. Temos muitos relatos de eventos adversos ligados a produtos contendo sinefrina e outras combinações”, informa. 

Silvia atribui esse quadro preocupante a uma “busca por performance estética rápida, o que geralmente leva a aumentar a dose ou combinar produtos, cenário clássico de intoxicação”. “Minha orientação é sempre priorizar o básico bem-feito. Dormir melhor, comer de forma equilibrada e treinar com constância. Esses pilares dão muito mais resultado do que aumentar estimulantes. Suplemento não substitui autocuidado, ele só entra como apoio, quando faz sentido e com segurança”, destaca. Ela sustenta que um diagnóstico preciso de intoxicação deve se basear em uma história detalhada do paciente, contendo o relato da substância, das doses e de quanto tempo a ingere, além de exame físico e laboratoriais direcionados. 

A nutricionista volta a bater na tecla da interferência social nesse aumento dos quadros de intoxicação por suplementos vitamínicos. “É um reflexo de ansiedade por resultado rápido. A promessa de ‘reforçar a imunidade’ com megadoses ignora que a imunidade saudável depende de fatores comportamentais e sociais, e que doses excessivas podem causar danos. Além disso, existe uma falha de comunicação entre ciência e público. O paciente quer resultado visível rápido e o marketing entrega a ‘receita’ perfeita. Estudos e análises críticas têm destacado a fragilidade de evidências para a soroterapia estética da ‘imunidade’ e os riscos éticos e biomédicos dessa prática”, diz. 

Responsabilidade social

A nutricionista Silvia Hespanha lembra que muitas pessoas são induzidas a enxergarem os suplementos vitamínicos como atalhos. “É mais fácil comprar uma pílula do que reorganizar a alimentação, o sono e a rotina. Mas para a maioria das pessoas saudáveis, uma dieta variada atende às necessidades do organismo”, garante. Ela, no entanto, faz questão de colocar a responsabilidade das clínicas e da indústria nessa balança. 

“Profissionais e clínicas têm obrigação ética de basear práticas em evidência, informar os riscos e benefícios e obter consentimento informado. Vender e promover ‘soro milagroso’ sem respaldo científico ou sem avaliação clínica é eticamente questionável e já motivou alertas por conselhos profissionais e pela literatura científica. Clínicas não devem explorar a vulnerabilidade do paciente”, critica a especialista. 

Ela defende que, antes de recomendar megadoses, o caminho seguro é “avaliar a necessidade e conhecer o histórico clínico do paciente”. “Suplementos não são inofensivos por serem ‘naturais’, tudo vira risco quando a dose ultrapassa a necessidade”, reforça, retomando o atualíssimo ensinamento de Paracelso. 

FONTE: O TEMPO