O feminicídio continua sendo uma das expressões mais extremas da violência contra a mulher no Brasil. No Espírito Santo, a cada novo boletim divulgado pela segurança pública, um padrão se confirma com brutal clareza. As mulheres seguem sendo assassinadas majoritariamente por parceiros, ex-companheiros ou homens do núcleo familiar, quase sempre dentro da própria casa e após ciclos repetidos de agressões anteriores.
A motivação central: controle, posse e “direito” sobre o corpo feminino
Pesquisas nacionais e levantamentos recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a maior causa apontada nos feminicídios é o sentimento de posse masculina sobre a mulher. Não se trata de um conflito qualquer, mas de uma lógica de dominação que enxerga a companheira como propriedade. Ao menor sinal de separação, autonomia financeira, nova relação ou simples resistência, o agressor aciona a violência extrema.
No Espírito Santo, onde a cultura de masculinidade autoritária ainda é forte em vários municípios, os dados reforçam essa dinâmica. Em mais de 70% dos casos classificados como feminicídio nos últimos dois anos, a motivação identificada pela polícia foi ruptura da relação, ciúmes, disputa de guarda ou recusa da vítima em continuar convivendo com o agressor. O feminicídio, portanto, nasce menos da fúria momentânea e muito mais de uma estrutura psicológica que vê a mulher como algo que não pode escapar.
A escalada de violência e a incapacidade institucional de interceptar o ciclo
Os números mostram que a maioria das vítimas havia denunciado agressões anteriores ou procurado ajuda informal de amigas e familiares. O caminho que leva ao feminicídio costuma ser previsível. A violência começa com controle emocional, evolui para agressões verbais, alcança o empurrão, o tapa, o isolamento e, finalmente, a tentativa ou consumação do homicídio. A cada novo passo, aumenta a sensação de impunidade do agressor e diminui a capacidade de reação da vítima.
Essa escalada evidencia não apenas a psicologia criminosa do assassino, mas também a insuficiência do Estado em criar mecanismos reais de proteção. A patrulha Maria da Penha é um avanço, porém opera com recursos limitados. As medidas protetivas salvam vidas, mas dependem da capacidade policial de fiscalizá-las. Em muitos casos, o feminicida age exatamente no intervalo em que o sistema falha.
A estatística que incomoda: o ES ainda figura entre os Estados com maior taxa per capita
Mesmo com avanços recentes, o Espírito Santo frequentemente aparece nas primeiras posições do país em taxa de feminicídio por cem mil habitantes. Um dado simbólico expõe o drama. Para cada mulher assassinada pelo crime organizado ou por assaltos, há várias mortas dentro de casa por parceiros. A violência doméstica, que deveria ser a mais fácil de mapear e prevenir, permanece como a mais letal para as capixabas.
O perfil das vítimas reforça o padrão nacional. A maioria tem entre 18 e 40 anos, vive em relações instáveis ou marcadas por dependência emocional ou financeira e, muitas vezes, convive com um agressor que alterna pedidos de perdão com ameaças de morte. Já o perfil do agressor é quase sempre o mesmo. Homem adulto, inseguro, controlador, com histórico de ciúmes obsessivo e dificuldade em lidar com rejeição. A psicologia criminal descreve esses indivíduos como homens que matam não porque amam demais, mas porque nunca aprenderam a perder.
Um editorial necessário: quando a sociedade tolera, o feminicida avança
A discussão sobre feminicídio não pode ser resumida a estatísticas. Elas são fundamentais, mas frias. O que realmente sustenta esse tipo de crime é a tolerância cultural ao comportamento masculino violento. Quando a sociedade ironiza denúncias, relativiza agressões, culpabiliza vítimas ou trata ciúme como prova de amor, ela contribui diretamente para o ambiente onde o feminicida se forma e age.
Não existe romantização possível do homem que mata. Ele não “perdeu a cabeça”, não agiu “no calor do momento”, não estava “desesperado”. Ele decidiu matar porque não conseguiu aceitar a autonomia da mulher. E essa decisão costuma ser antecedida por anos de indícios ignorados. O feminicídio, portanto, não é apenas um crime passional. É um ato de poder, uma declaração violenta de que a liberdade feminina ainda é vista como ameaça.
O Espírito Santo tem avançado, mas ainda convive com números que envergonham qualquer sociedade minimamente civilizada. Enquanto o debate permanecer tímido e a responsabilização continuar lenta, o ciclo continuará se repetindo. O feminicídio só será reduzido quando a cultura que sustenta o agressor deixar de ser aceita. Até lá, cada nova estatística carregará a mesma história de controle, medo e silêncio que poderia ter sido interrompida muito antes.