A megaoperação contra o Comando Vermelho, que deixou ao menos 121 mortos no Rio de Janeiro nesta semana, pode acabar fortalecendo a própria facção. A avaliação é de criminalistas que apontam que a ação, coordenada pelo governo do estado do Rio, não deve ser eficaz para o objetivo a que se propõe: acabar com o crime organizado. Muito pelo contrário, pode levar os criminosos a “diversificar” a atuação para driblar o Estado.
Na visão do advogado criminalista e professor de direito penal Guilherme Gama, o saldo de mortes após a incursão policial nos complexos do Alemão e da Penha gera um falso símbolo de sucesso e não “ataca” diretamente a roda que faz o crime organizado girar. “O que vemos é um cenário de tragédia e de desgaste institucional. A operação no Rio expôs uma lógica que prioriza o confronto em vez da estratégia, colocando policiais e civis em risco sem atingir o coração financeiro das facções. A experiência mostra que facções não desaparecem com operações de guerra. Elas se reestruturam rapidamente, substituem lideranças e mudam suas rotas de atuação”, diz.
A operação foi muito comparada com o “Massacre do Carandiru”, por sua letalidade. O professor Guilherme Gama lembra que o resultado do massacre foi mais benéfico para o próprio crime organizado, especialmente o Primeiro Comando da Capital (PCC). “A história já mostrou que a violência desmedida e as operações de extermínio não resolvem o problema, apenas criam novas dinâmicas criminosas. O massacre do Carandiru é um exemplo claro: longe de conter a criminalidade, ele contribuiu para o fortalecimento do PCC e para sua expansão nacional”, afirma.
Para ele, o resultado da megaoperação desta semana pode ser parecido. “Quando o Estado responde com opressão, sem inteligência e sem estratégia social, ele alimenta o ressentimento e gera um ambiente fértil para o recrutamento de novos integrantes. Isso pode, sim, gerar um vácuo no Rio de Janeiro, que tende a ser ocupado por quem tiver mais estrutura logística e financeira, seja o próprio Comando Vermelho reorganizado ou grupos rivais como o PCC”, argumenta. “O efeito colateral de uma política de guerra é sempre o mesmo: enfraquece a confiança pública e fortalece, de forma indireta, a lógica de poder das facções”, frisa.
O advogado criminalista Négis Rodarte, membro da Comissão Especial de Direito Processual Penal do Conselho Federal da OAB, acrescenta que, caso o Comando Vermelho seja desarticulado no Rio, em questão de território, pode abrir espaço para outras facções. “É possível haver impactos indiretos, às vezes até direto (ao PCC). Quando se desarticula uma facção em determinado território, pode surgir um vácuo que outras tentam ocupar. Isso não significa, em absoluto, o fortalecimento automático de uma ou de outra, mas o Estado precisa monitorar de forma constante para que não haja migração de atividades ou expansão criminosa”, avalia.
Négis Rodarte acredita que, após a megaoperação no Rio, o crime organizado tende a reagir com três movimentos: atos violentos pontuais, deslocamento de líderes e rotas e reforço dos mecanismos financeiros para tentar mascarar o patrimônio. “Por isso, entendo que a atuação deve ser firme, legal, com inteligência e também respeito aos direitos humanos. Segurança pública eficiente e constitucional é aquela que protege o cidadão e enfraquece o crime, sem, entretanto, permitir abusos e sem alimentar ciclos de violência”, diz.
Guilherme Gama explica que, quando o Estado intensifica o confronto direto, o crime organizado responde com adaptação. “As organizações criminosas aprendem rapidamente a reduzir a exposição e a diversificar suas fontes de renda. Elas tendem a descentralizar o comando, investir em atividades menos visíveis e ampliar a corrupção para garantir proteção institucional”, explica.
O professor acrescenta que, para evitar ainda mais o crescimento das facções, o Estado deve agir com inteligência. “Esse tipo de operação letal alimenta o ciclo de descontrole, pois afeta principalmente populações pobres e negras, deixando intocadas as estruturas financeiras que sustentam o tráfico e outros crimes”, diz.
“Enquanto o foco continuar sendo a guerra e não o investimento em políticas sociais e inteligência, as mortes continuarão a aumentar e o crime seguirá se reinventando. A experiência internacional mostra que segurança eficaz depende de investigação, tecnologia e inteligência, não de operações que transformam territórios em campos de batalha”, sintetiza Gama.
Carbono Oculto teria estratégia mais eficaz
A guerra contra o crime organizado está em evidência nos noticiários há meses. Especialmente em razão da operação Carbono Oculto, que mira esquemas de lavagem de dinheiro nos mais variados setores da economia, incluindo combustíveis e mercado financeiro, tem gerado milhões de reais em prejuízo ao PCC. Comparada com a megaoperação contra o CV no Rio de Janeiro, a Carbono Oculto é apontada como mais eficaz para atingir o “coração” da facção. “No caso do PCC, quando o Estado atua com foco em crimes contra o sistema financeiro e a estrutura econômica da facção, o resultado tende a ser mais efetivo, pois o combate se dá por meio de inteligência e investigação”, comenta Guilherme Gama.
Para o professor de teoria do estado e direito constitucional Ricardo Souza, a operação Carbono Oculto ataca o “coração” da facção. “Na operação do Rio de Janeiro, ao final das contas, o saldo que nós temos é de corpos, de ambos os lados, policiais inclusive foram vitimados. Já essa operação de São Paulo foi no coração, no cérebro da operação da organização criminosa, que é o dinheiro. Na medida que você bloqueia esses fluxos de capital que sustentam o crime, você realmente gera um efeito muito mais efetivo, de prejuízo”, analisa.
“O ideal seria que operações como essa, de inteligência, fossem utilizadas também contra o Comando Vermelho, porque é sabido também que o CV, mesmo em menor escala, também se utiliza de expedientes de lavagem de dinheiro”, opina Ricardo Souza.
FONTE: O TEMPO