
A belo-horizontina Fernanda Maciel escreveu mais um capítulo marcante na sua trajetória nos esportes de aventura. Neste mês, ela se tornou a primeira mulher a completar a rota GR11, na travessia Transpirenaica, um dos percursos mais exigentes do mundo, com 786 km de extensão pelas montanhas dos Pirineus, do Cabo Higuer, no País Basco, até o Cap de Creus, na Catalunha.
Foram 12 dias, 12 horas e 9 minutos de esforço físico e mental extremo, enfrentando 35 mil metros de subida acumulada, terrenos técnicos, variações climáticas severas e muita solidão.
Morando nos Pirineus desde 2009, Fernanda, atleta da Red Bull, viveu por anos em pequenas vilas da região. Essa escolha permitiu que ela se aproximasse do estilo de vida que buscava, o da corrida de montanha, e alimentasse um sonho antigo.
“Tem mais ou menos uns 15 anos que sonho em fazer essa travessia e conhecer os Pirineus todo. É uma travessia de 800 km, só de sobe e desce. Muito técnica. Ou seja, aqui (na rua) eu faço 5 km em 20 minutos, lá eu fazia 5 km entre 1 e 2 horas”, contou Fernanda. “Não são muitas pessoas que fazem a GR11, é bem difícil a progressão nessa travessia, mas é maravilhoso e muito selvagem.”
Apesar de ter a opção de fazer todo o percurso com suporte, Fernanda decidiu ir sozinha. Enfrentou longas horas de silêncio nas montanhas, sem cruzar com ninguém. “Nada podia dar errado.”, ressaltou.
Preparação intensa, física e mental
Para se arriscar em um desafio como esse, a preparação foi detalhada, e não apenas física. O aspecto mental foi igualmente treinado.
“Nos últimos meses foquei no fortalecimento de quadríceps, com muito treino de descida. Também fiz treino em subida rápida e com a mochila de 5 km. Muita preparação mental também. Eu trabalhei muito de visualização na minha chegada, sentindo as emoções e fazendo tudo bem automático. Eu sabia que, com o cansaço, eu ia ter que agir totalmente sem pensar.”
Refúgios, desconforto e noites em claro
Durante a travessia, Fernanda utilizou os refúgios espalhados pelo caminho para comer e descansar. Em média, encontrava uma pessoa a cada seis horas de corrida. As noites, no entanto, não foram tranquilas. Além de precisar se programar perfeitamente para estar nos refúgios sempre quando a noite cair, também teve que lidar com as dificuldades de dividir o espaço com outros aventureiros.
“O negativo é que dormem muitas pessoas no mesmo quarto, então é praticamente não dormir. Nos 5 primeiros dias eu não dormi nada. Era muita adrenalina no corpo e muito desconforto. Minha perna ficou muito inchada, tinha muita retenção de líquido, diarreia, não parava de ir ao banheiro a noite inteira. Só depois de 5 dias que consegui dormir 3 ou 4 horas e focar mais no caminho com a cabeça mais descansada.”
FOTO: Mathis Dumas / Red Bull Content Pool (Arquivo)
Dias “punk” e superação física
Para Fernanda, todos os dias foram duros, sem exceção. Alguns momentos, no entanto, testaram seus limites.
“Todos os dias foram ‘punk’. Eu tinha cãibra nas mãos, no pescoço, no diafragma, fiquei desidratada. No dia 1 passei a noite inteira com diarreia, fui mais de 30 vezes no banheiro. Era para ser o mais tranquilo, mas eu fiz 90 km nesse dia. Queria ter corrido 100 km e não consegui.”, relatou.
“Depois dos primeiros 25 km no segundo dia, eu parei numa vila que não tinha nada, nem água. No terceiro dia eu me perdi. Era cada dia assim. No dia 7 foi o mais complicado, perdi o controle da minha perna, fiquei sem energia. Cheguei a pensar que tinha que ficar um dia extra só descansando, mas é impressionante como o corpo recupera, porque no seguinte eu acordei recuperada e avancei bastante.”, continuou Fernanda. “O último dia é mais fácil pela motivação ser grande.”
“O que mais me orgulho é de ter começado”
Menos de um mês depois da travessia, Fernanda ainda processa o feito. Quando perguntada sobre os próximos desafios, ela é direta: o foco agora é curtir o momento e refletir sobre tudo que viveu.
“Continuo tentando assimilar o que fiz, mas o que tenho mais orgulho não é nem ter acabado, e sim ter começado. Fico feliz por ter a coragem de colocar isso como um projeto pessoal, ter me preparado para isso e ter a coragem de fazer isso sozinha”, disse a ultra corredora.
“É isso que fica para mim de grande aprendizado. Agora vou desfrutar desse sonho que aconteceu, do que vi ali e vivi por lá e de onde passei. Ainda estou sem acreditar. Foi muito bonito e estou muito feliz de ter feito.”
“A vida é uma só”
Para quem pensa em mudar de vida ou correr atrás de um sonho, Fernanda deixa uma mensagem poderosa, fruto de tudo que aprendeu em sua jornada:
“Sempre tem algo que a gente pode sonhar em fazer melhor, algo que podemos inovar, algo que podemos criar, que é muito pessoal nosso, que só nós vamos dar valor. Ter esse momento de parar, ir lá, no fundo, e pensar: ‘o que eu realmente gostaria nessa vida? Que experiência quero ter?’. Por mais que para isso tenha uma preparação muito dura, acho que ter esse tempo para sonhar, refletir, e buscar isso é muito importante para nós.”, refletiu a atleta, que tem muitas outras trajetórias extremas no currículo.
“Isso faz a gente estar mais viva, e a vida é muito curta. Precisamos desses momentos de nos desafiar para sermos melhores pessoas e ter esses sonhos vivos dentro de nós.”, concluiu.
FOTO: Red Bull Media House