
A morte do papa Francisco nesta segunda-feira (21) abriu oficialmente o período de sede vacante e do próximo conclave. Como em ocasiões anteriores, o processo de escolha do pontífice já começou a ser politizado.
Artigos recentes têm transformado o conclave em uma espécie de eleição presidencial fora de época. “Trump quer influenciar conclave na escolha do próximo Papa”, dizia um título. “Especialistas veem novo papa como progressista, moderado e europeu”, afirmava outro. “Briga de poder no Vaticano: um papa ‘anti-Francisco’ vai surgir do conclave?”, questionava um terceiro.
O tom dessas abordagens, reproduzido também em postagens nas redes sociais, segue uma tendência que se consolidou na cobertura dos últimos conclaves: apresentar o colégio cardinalício como um parlamento dividido em blocos ideológicos e o novo pontífice como um chefe de governo que representaria determinada plataforma.
O filme Conclave (2024), que estreou recentemente em uma plataforma de streaming, leva essa tendência ao extremo, retratando o processo de escolha como uma trama de manipulações, rivalidades e segredos pessoais – algo próximo de uma série como House of Cards.
Para quem conhece a história da Igreja e o mundo eclesiástico, esse tipo leitura é bastante equivocado. “Tentar pautar a escolha do novo papa por critérios políticos não faz sentido. Geralmente, quem faz isso não acompanha o universo eclesiástico e entende muito pouco ou nada do assunto. Quando se vê alguém usando categorias políticas como ‘conservador’, ‘progressista’ ou ‘liberal’, ou ainda ‘direita’ ou ‘esquerda’ para pautar a escolha do novo papa, o mais provável é que esse analista não entenda nada do assunto e que esteja tratando o papa como um mero líder político, ao invés de enxergar que ele é, na verdade, um líder espiritual”, afirma Julio Cesar Chaves, doutor em Ciências das Religiões pela Université Laval e professor de História da Igreja do Seminário Arquidiocesano de Brasília.
Os palpites com visão política sobre o futuro papa que aparecem na imprensa e nas redes, segundo ele, são geralmente pouco embasados. “Há um ditado famoso que diz que quem entra papa no conclave sai de lá como cardeal. Isso quer dizer que raramente quem é apontado como favorito é eleito papa. Foi o caso do próprio papa Francisco, inclusive, que não aparecia como favorito. E isso acontece exatamente porque a escolha do papa não é regulada por critérios políticos ou meramente humanos, como os analistas querem muitas vezes fazer parecer.”
Essa compreensão do processo é também destacada por Felipe Aquino, autor de livros apologéticos e apresentador da TV Canção Nova. “A Igreja faz tudo para que não haja essa politização. Os cardeais ficam reclusos, não podem levar para dentro do conclave o celular, não podem expor para fora nem antes nem depois o que acontece lá”, diz.
Chaves lembra que a influência da política sobre o conclave já existiu em outros tempos, mas hoje é muito menos provável. “É inegável que, em determinados momentos da história da Igreja, a eleição de um novo papa foi marcada por categorias políticas, com monarcas tentando interferir na eleição, por exemplo. Mas isso aconteceu há alguns séculos, e a própria Igreja foi estabelecendo regras cada vez mais claras ao longo do tempo exatamente para impedir qualquer tipo de interferência política na escolha de um novo papa. Seria, portanto, inimaginável que hoje qualquer chefe de Estado interviesse na eleição de um papa, por exemplo. Trata-se de uma escolha reservada exclusivamente aos cardeais que participam do conclave.”
Em relação às diferentes visões de mundo que podem entrar em confronto dentro de um conclave, Aquino pondera: “A gente sabe que na Igreja há alas mais tradicionais e alas mais progressistas. Isso é inegável. E claro que cada uma dessas alas fica trabalhando, na medida do possível, para eleger o seu candidato. Mas é difícil a gente saber até que grau isso acontece entre os cardeais, porque eles mesmos são proibidos de revelar o que se passou durante o conclave.”
Ideia de que eleição do papa é processo politizado não resiste à história recente
Aquino reconhece que a dinâmica do conclave pode envolver, sim, discernimento humano sobre questões que geram controvérsia – mas sempre dentro de um contexto de oração e reserva. Ele lembra que “os cardeais são homens maduros, que passaram por experiências de vida sérias”, e não são facilmente influenciáveis por critérios meramente políticos. “Penso que cada um deles já tem mais ou menos uma determinação sobre aquilo que acha”, afirma.
A ideia de que a eleição do papa é um processo guiado por estratégias políticas também não resiste à história recente. Aquino recorda um exemplo concreto: “Os cardeais que elegeram o papa Francisco foram todos feitos cardeais pelo papa João Paulo II e pelo papa Bento XVI, ou seja, cardeais de uma linha tradicional elegeram o papa Francisco. Será que agora, quando 80% dos cardeais foram escolhidos pelo papa Francisco, vão escolher um papa da mesma linha do papa Francisco? É difícil dizer. Assim como na eleição de Francisco houve uma coisa meio paradoxal, agora pode acontecer também. É muito difícil fazer um prognóstico disso.”
Julio Cesar Chaves reforça essa dificuldade em categorizar os papas em termos de conservadorismo ou progressismo, continuidade ou oposição. Ele observa que “é muito comum ver analistas – que mais uma vez, aparentam não entender nada do assunto – tentando opor o papado de Francisco ao de seus antecessores, especialmente João Paulo II e Bento XVI”. “Francisco estava muito alinhado aos seus antecessores. Ele foi ordenado bispo durante o papado de João Paulo II e feito cardeal pelo mesmo João Paulo II”, destaca.
Em geral, as mudanças que um novo papa pode promover dizem mais respeito a ênfases pastorais do que a rupturas teológicas – o que, novamente, escapa à lógica política. Para Aquino, independentemente de qual possa ser o resultado, os católicos devem olhar para o conclave com confiança.
“Na história da Igreja, houve papas excelentes, papas santos, mas também papas com perfis muito difíceis, e a Igreja está aí por dois mil anos. Jesus sabia que a Igreja ia passar por muitos problemas humanos, e a graça de Deus age sem tirar a liberdade humana. Pode acontecer, como já aconteceu na história da igreja, de haver papas que não sejam tão desejados, mas Cristo é quem conduz a igreja, e ele nunca vai deixar a Igreja perder o rumo, perder o caminho da salvação da humanidade. Eu acho que a gente tem que ficar tranquilo nesse aspecto. Seja eleito quem for, a gente sabe que Cristo está por trás, conduzindo a Igreja”, diz.
Fonte: Gazeta do Povo