

1º de abril é famoso por ser Dia da Mentira, mas em 2025 a triste realidade foi a nomeação pelo Secretário de Justiça do Espírito Santo, Rafael Pacheco, de um policial penal do sexo masculino para a direção do Centro Prisional Feminino de Cachoeiro de Itapemirim (CPFCI).
A decisão ganha contornos ainda mais problemáticos ao se constatar que a medida não apenas ignora a legislação vigente, mas também o potencial e a qualificação de 39 policiais penais femininas atuantes na região, cujos nomes e cargos são públicos e acessíveis através do Portal da Transparência do Estado.
A escolha de Pacheco desrespeita o artigo 83 e o artigo 77, § 2º, da Lei de Execução Penal, que restringe o trabalho de homens em presídios femininos, e também lança uma sombra de desvalorização sobre o trabalho e a capacidade das servidoras do sistema.
A justificativa apresentada pelo Secretário de Justiça — de que o servidor nomeado para diretor de uma unidade prisional feminina já exercia há anos a função de diretor-adjunto e demonstrou profissionalismo — revela uma compreensão limitada sobre os princípios que devem nortear a gestão penitenciária em espaços de vulnerabilidade de gênero, e ignora preceitos legais e normativos que visam proteger especificamente a mulher presa.
Ainda que o servidor tenha exercido a função de diretor-adjunto com profissionalismo, isso não significa que sua nomeação para o cargo máximo da unidade seja adequada à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF) e da proteção especial às mulheres em situação de vulnerabilidade. A experiência administrativa não elimina os riscos estruturais próprios da presença de um homem em posição de comando em uma unidade exclusivamente feminina — riscos que vão desde abusos sexuais até a imposição de controle emocional e simbólico sobre internas e servidoras.

O artigo 83 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) estabelece com clareza que “o estabelecimento penal feminino será dirigido por mulher”. Tal norma não é decorativa ou simbólica: trata-se de uma salvaguarda legal destinada a proteger internas contra situações de abuso e exploração institucional. O fato de o servidor já exercer função de confiança como adjunto não legitima a transgressão da lei, tampouco transforma um ato administrativo ilegal ou inadequado em juridicamente aceitável. Ao contrário, a nomeação perpétua uma irregularidade, agora agravada pela formalização da autoridade máxima.
Gestores públicos devem atuar segundo o princípio da precaução — ou seja, prevenir situações de risco antes que danos se concretizem. A nomeação de um homem para cargo de direção em unidade feminina ignora essa lógica, pois desconsidera a realidade concreta do sistema prisional brasileiro: um ambiente altamente vulnerável a práticas de assédio, coação e violência sexual, muitas vezes naturalizadas ou acobertadas.
A prevenção desses abusos exige não apenas confiança no servidor, mas estruturas que dificultem, ao máximo, a ocorrência de violações. Isso inclui, essencialmente, respeitar o comando legal da direção por mulher. O profissionalismo alegado não é critério suficiente quando está em jogo a segurança de mulheres em situação de absoluta vulnerabilidade.
Ao alegar que o histórico funcional do servidor o torna “naturalmente” apto para assumir a direção, o discurso do secretário colabora para a perpetuação de uma lógica institucional masculina, que ignora os marcadores de gênero e minimiza a importância da representatividade feminina em espaços de poder dentro do sistema penitenciário.
Além disso, a existência de 39 policiais penais femininas em Cachoeiro, somada à experiência de um total de 11 diretoras e 7 diretoras-adjuntas em todas as unidades prisionais do Estado do Espírito Santo, torna a nomeação ainda mais questionável.

A vice-presidente do Sindicato dos Policiais Penais do Estado do Espírito Santo (Sindppenal), Letícia Lugão Machado, expressou a frustração da categoria. “A lei de execução penal está clara e deve ser cumprida. O sindicato existe para defender os interesses dos servidores penitenciários e garantir o cumprimento das legislações vigentes. Não estamos aqui para julgar a competência de ninguém, até mesmo o porquê o policial penal que foi nomeado ao cargo possui uma vasta experiência de gestão e possui requisitos para tal, entretanto, estamos falando de uma Lei que proíbe homens em unidades prisionais femininas. O sindicato foi demandando por policiais penais femininas que se sentiram desprestigiadas diante deste cenário, que mesmo com toda a qualificação exigida e anos de experiência, não foram lembradas para ocuparem o cargo”, ressalta.
O sindicato reforça que a nomeação não apenas ignora a legislação, mas também perde a oportunidade de fortalecer a gestão do CPFCI com uma liderança feminina que, conforme apontam especialistas, tende a promover um ambiente mais adequado para as internas e para o tratamento de questões sensíveis como violência de gênero.
Violência de gênero e impactos de gestão
Letícia Lugão Machado vê a decisão como uma situação grave. “O não cumprimento dessa exigência legal é uma afronta não somente à própria legislação, que determina expressamente que a gestão de unidades femininas deve ser conduzida por mulheres, mas também desrespeita os direitos das policiais penais que possuem perfil para o cargo, além de comprometer a humanização e eficiência da gestão prisional feminina. Já é muito difícil para as mulheres lutarem diariamente não apenas por equiparação, mas por oportunidades reais de gestão. O número de mulheres em cargos de chefia dentro do sistema prisional ainda é extremamente baixo, e isso precisa ser revisto e corrigido.”
A lista de diretoras e diretores adjuntas, logo ao final desta matéria, evidencia a existência de mulheres qualificadas e experientes no sistema prisional capixaba. Por mais que o número delas seja extremamente inferior ao número de homens à frente dos mesmos cargos, é inegável que não falta reserva de mercado para a posição. A decisão de Rafael Pacheco de preterir o potencial dessas servidoras em favor de uma nomeação masculina para o CPFCI levanta sérias dúvidas sobre os critérios de escolha e o reconhecimento do papel da mulher na gestão prisional.
Muito se falou nas redes sociais, após a notícia da nomeação repercutir, que “existem mulheres comandando presídios femininos e ninguém fala nada”. Porém, o que poucos pararam para refletir é que um diretor poderia hipoteticamente ter relação sexual com várias internas no presídio em que ele comanda, levando várias delas a ficarem grávidas. É importante destacar que o inverso — uma diretora engravidar homens presos — não é biologicamente possível, afinal, somente ela ficaria grávida, o que evidencia a desigualdade concreta e os riscos singulares da nomeação de diretores homens em cadeias femininas.
Casos documentados ao longo da história humana mostram que diretores homens, valendo-se de sua posição de poder, mantêm relações sexuais com diversas internas. Essa prática, além de ser ilegal, resulta frequentemente em gestações indesejadas e sem assistência adequada. A gravidez no cárcere, quando resultante de relação com agentes da administração, configura não apenas um crime, mas uma violação brutal da dignidade da mulher encarcerada.
Em um ambiente onde a autoridade é absoluta e as represálias são frequentes, internas dificilmente denunciam abusos sexuais, sobretudo quando o autor é o próprio diretor da unidade. O medo de retaliações, a descrença nos mecanismos de denúncia e a vergonha associada ao abuso criam um ambiente de silêncio e impunidade. Nessas condições, a administração da prisão deixa de ser instrumento de segurança e passa a ser vetor de violência institucional.

O advogado Pablo Laranja, professor, presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-Vila Velha e das Prerrogativas da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abacrim) do Espírito Santo e mestre em Segurança Pública, destacou a necessidade de monitoramento. “A liderança masculina em unidades prisionais femininas exige atenção redobrada por parte do Estado, especialmente no que diz respeito à segurança institucional e à dignidade da mulher presa. Não se trata de uma discussão ideológica, mas de uma constatação prática e jurídica, sendo necessário ressaltar que grande parte das mulheres encarceradas tem histórico de violências graves, e abusos sexuais praticados por pessoas do sexo masculino, o que compromete a confiança, a transparência e até a possibilidade de denúncias, quando a unidade prisional é dirigida por homens.”
Laranja também apontou o impacto da liderança feminina no tratamento de denúncias de violência de gênero: “Sem dúvida, a presença de lideranças femininas impacta profundamente a forma como denúncias de violência de gênero e outras questões sensíveis são tratadas no ambiente prisional. Quando uma mulher ocupa a chefia de uma unidade feminina, cria-se um espaço mais propício para escuta, acolhimento e confiança — elementos fundamentais para que internas se sintam seguras para relatar abusos ou situações de vulnerabilidade. Muitas dessas mulheres já enfrentaram ciclos de violência antes da prisão, e repetir a experiência do silêncio forçado dentro do sistema penal agrava ainda mais esse quadro”, concluiu.
Diversos instrumentos internacionais recomendam uma abordagem sensível ao gênero na gestão de estabelecimentos penais. As Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras) enfatizam a importância de políticas específicas para mulheres presas, inclusive no que diz respeito à composição de equipes técnicas e administrativas.
Lista de diretoras e diretoras adjuntas do Portal da Transparência:
- Alessandra Alves Lopes (Diretora da Penitenciária Semiaberta de Cariacica);
- Alessandra Rodrigues Costa (Diretora do Centro de Detenção Provisória de São Mateus);
- Aline Ozorio Venturim (Diretora Adjunta da Penitenciária Regional de São Mateus);
- Bruna Vieira Brava (Diretora Da Casa De Custódia De Vila Velha);
- Dayany Rodrigues De Queiroz (Diretora Do Centro Prisional Feminino De Colatina);
- Grazielli Criptan Murari Da Cunha Porto (Diretora Do Centro De Detenção Provisória De Guarapari);
- Joania Dantas Chiabai (Diretora Da Penitenciária Semiaberta de Cariacica II;
- Josiane Venancio Santos Merce (Diretora Adjunta da Unidade De Custódia e Tratamento Psiquiátrico);
- Keila Sazana Nogueira (Diretora Adjunta da Penitenciária de Segurança Média II);
- Leizielle Marcal Dionizio (Diretora Da Penitenciária Agrícola Do Espirito Santo);
- Lucimar Duarte De Almeida Ferreira (Diretora Adjunta do Centro Prisional Feminino De Colatina);
- Mara Lucia de Paula (Diretora da Penitenciária Semiaberta De Vila Velha);
- Maria Aparecida de Freitas De Albuquerque (Diretora Da Penitenciária Semiaberta de São Mateus);
- Taciane Covre (Diretora da Penitenciária Semiaberta Masculina De Colatina);
- Patrícia Lima De Castro (Diretora do Centro Prisional Feminino De Cariacica);
- Solange Aparecida do Nascimento (Diretora Adjunta do Centro Prisional Feminino De Cariacica).
FONTE: THAUANE LIMA – ES HOJE