Caso de escravizada na casa de desembargador de SC entra na 'lista suja

Fiscalização conjunta de cinco órgãos públicos concluiu que Sônia Maria de Jesus foi mantida em regime de trabalho escravo doméstico por quase 40 anos na residência do desembargador Jorge Luiz de Borba, do TJ-SC

Fiscalização conjunta de cinco órgãos públicos concluiu que Sônia Maria de Jesus foi mantida em regime de trabalho escravo doméstico por quase 40 anos na residência do desembargador Jorge Luiz de Borba, do TJ-SC -

Ana Cristina Gayotto de Borba, esposa do desembargador Jorge Luiz de Borba, do TJ de Santa Catarina, foi incluída na lista suja do trabalho escravo, divulgada hoje pelo governo federal. A inclusão ocorreu após fiscalização que apontou a manutenção de Sônia Maria de Jesus em condições análogas à escravidão por quase 40 anos na residência da família, em Florianópolis. O casal nega irregularidades.

Também foram adicionados à lista nomes como Marcos Rogério Boschini, genro de um dos condenados pela chacina de Unaí (MG), além da rede de supermercados Oba, uma prestadora do Rock in Rio, invasores de terras indígenas e produtores rurais.

O cadastro, atualizado semestralmente pelo Ministério do Trabalho, inclui empregadores que já passaram por duas instâncias administrativas e permanecerão listados por dois anos. Embora não gere sanções diretas, a lista é usada por bancos e empresas para avaliação de risco, sendo reconhecida pela ONU como ferramenta de referência no combate ao trabalho escravo.

Na nova atualização, destacam-se as atividades de pecuária (21 novos casos), cultivo de café (20), trabalho doméstico (18), carvão vegetal (10) e extração de minerais (7). A lista agora soma 745 nomes.

Caso Sônia Maria de Jesus

Ana Cristina Gayotto de Borba entrou na “lista suja” do trabalho escravo após ser autuada por manter Sônia Maria de Jesus em regime análogo à escravidão por quase 40 anos. A vítima começou a trabalhar com a família aos 9 anos, sem salário, direitos trabalhistas ou documentos — seu RG só foi emitido em 2019. Cega de um olho, surda e sem alfabetização, ela se comunicava por gestos e dormia em espaços improvisados na casa da família Borba, em Florianópolis.

A defesa afirma que Sônia foi criada como filha. Mesmo após o resgate pela fiscalização, o casal obteve aval do STJ e do STF para levá-la de volta para casa. O caso provocou reação de entidades de direitos humanos, que recorreram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O processo ainda será analisado pela 2ª Turma do STF.

Fazenda de condenado pela chacina de Unaí entra na ‘lista suja’

Marcos Rogério Boschini, administrador da fazenda São Paulo, em Água Fria de Goiás (GO), entrou na “lista suja” após 84 trabalhadores serem resgatados da lavoura de cebola em condições análogas à escravidão. O alojamento estava superlotado, com mofo e fossa transbordando, abrigando quase o triplo da capacidade.

Boschini é genro de Antério Mânica, ex-prefeito de Unaí (MG), condenado como um dos mandantes da chacina que matou quatro servidores do MTE em 2004. A fazenda foi ocupada por 500 famílias do MST nesta semana, que alegam se tratar de terra pública adquirida ilegalmente.

O administrador se defende, chamando sua inclusão na lista de “injustiça”. Alega que todas as exigências da fiscalização foram cumpridas dias após a operação e que os problemas seriam apenas “falhas administrativas”.

Pecuária tem mais nomes de empregadores incluídos

Com 21 nomes, a pecuária é o setor com mais inclusões na nova atualização da “lista suja” do trabalho escravo. Quatro casos ocorreram durante a operação de desintrusão da Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), no fim de 2023.

Entre os incluídos está o vereador Antônio Borges Belfort (PL), flagrado com um trabalhador em condições degradantes na fazenda Sol Nascente, localizada ilegalmente dentro da terra indígena. O empregado não tinha acesso a água potável nem banheiro — era forçado a fazer suas necessidades no mato. Belfort já é réu na Justiça Federal por criação ilegal de gado e uso de trabalho escravo na área protegida.

Ao ser questionado, o vereador minimizou as denúncias e declarou: “Nunca um trabalhador foi maltratado. Vou provar na Justiça.”

Outro caso envolve o ex-vice-prefeito de Tucumã (PA), Wanderley Dias Vieira (PSD). Em outubro de 2023, dois trabalhadores foram resgatados em sua fazenda Primavera, vizinha à Apyterewa. Eles estavam sem registro em carteira e dormiam ao lado de galões de agrotóxicos. A reportagem aguarda posicionamento do político.

Alimentos eram armazenados ao lado de agrotóxicos no alojamento dos empregados do ex-vice prefeito de Tucumã Wanderley Dias Vieira
Alimentos eram armazenados ao lado de agrotóxicos no alojamento dos empregados do ex-vice prefeito de Tucumã Wanderley Dias VieiraImagem: Reprodução/MTE

Oba Hortifruti entra na ‘lista suja’ de trabalho escravo

A rede de hortifrutis Oba foi incluída na “lista suja” do trabalho escravo por submeter 21 trabalhadores a condições análogas à escravidão em uma loja localizada na zona norte de São Paulo. A fiscalização ocorreu em julho de 2023.

Os empregados, que atuavam no corte de vegetais e atendimento ao público, viviam em um alojamento precário próximo à unidade. Segundo os fiscais, dormiam em colchões sujos e malcheirosos em uma residência parcialmente destruída por um incêndio semanas antes. No local, ainda havia cheiro de material queimado e risco de novo incêndio devido a fios expostos e queimados.

Sem roupas de cama fornecidas pela empresa, os trabalhadores usavam trapos e cobertores próprios. Também descansavam em sofás rasgados, dispostos na área externa. O imóvel não tinha armários, os banheiros eram úmidos e exalavam cheiro forte de suor e urina. A cozinha estava suja, com utensílios e eletrodomésticos contaminados, além de restos de comida espalhados.

Após o flagrante, a empresa — que possui mais de 70 unidades em São Paulo, Goiás e Distrito Federal — assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho. O acordo prevê reparação por danos morais individuais e coletivos, além do compromisso de não reincidir.

Procurado, o Oba não respondeu até o fechamento desta edição. O espaço segue aberto para manifestações.

Terceirizada do Rock in Rio entra para o cadastro

A FBC Backstage Eventos Ltda foi incluída na “lista suja” do trabalho escravo por submeter 14 trabalhadores a condições degradantes durante a edição de 2024 do Rock in Rio. A empresa prestava serviços à Rock World, organizadora do festival, e se recusou a firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho.

Segundo a fiscalização, os trabalhadores exerciam jornadas exaustivas, chegando a trabalhar por 21 horas seguidas. “Eles começavam às 8h e iam até as 17h. Quando acabava o turno, o supervisor perguntava quem queria dobrar. E eles seguiam até as 5h da manhã, retornando apenas três horas depois”, relatou o auditor fiscal Alexandre Lyra.

Durante o descanso, os trabalhadores dormiam no chão, sobre papelões e sacos plásticos, usando mochilas como travesseiros. Banheiros improvisados serviam como local para higiene, e algumas mulheres tomavam banho de caneca, precisando retirar a maçaneta da porta para garantir privacidade.

Os empregados atuavam na montagem de estruturas, transporte de bebidas e equipamentos, além da limpeza de espaços do evento. Foram contratados com promessa de diárias entre R$ 90 e R$ 150, valores que não foram totalmente pagos.

A FBC foi procurada, mas não respondeu até o fechamento desta edição. O espaço segue aberto para manifestação.

Constitucionalidade da “lista suja”

O Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da lista, por 9 votos a 0, ao analisar a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 509, ajuizada pela Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), em setembro de 2020.

A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A Corte afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção —que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.

O relator destacou que um nome só vai para a relação após um processo administrativo com direito a ampla defesa.

Trabalho escravo hoje no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em 1888, mas ainda persistem situações que negam liberdade e dignidade a trabalhadores no Brasil. Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê punição para o chamado trabalho escravo contemporâneo, que inclui trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva, conforme o artigo 149 do Código Penal.

Mais de 65 mil trabalhadores já foram resgatados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batata, cebola, sisal, em atividades como derrubada de mata, produção de carvão, extração de minérios, construção civil, oficinas de costura, bordéis e também no trabalho doméstico.

FONTE: UOL