No Rio de Janeiro, a fome tem cara: são pessoas negras, jovens, de baixa escolaridade, desempregadas, com filhos. Em uma ocupação na cidade — que terá o nome preservado —, o EXTRA ouviu relatos de famílias que, mesmo com o Auxílio Brasil de R$ 600, enfrentam dificuldade para conseguir ter mais de uma refeição por dia. Eles estão dentro do universo de 33 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar no país.

A situação na ocupação, onde residem 270 pessoas, sendo grande parte formada por crianças, carece de infraestrutura básica. Os banheiros são coletivos. O cômodo que abriga móveis quebrados recolhidos das ruas e colchões antigos — há quem não tenha onde dormir, nem como cozinhar — vira uma cozinha improvisada, onde não existe pia.

 

Luana Stefany da Silva, de 20 anos, mãe de dois filhos — Antônio Carlos, de 3 anos, e Tauane, de 1 —, mora no último andar habitável do prédio. A construção tem nove andares, mas somente até o 7º são ocupados; os demais oferecem risco.

 

Luana de Paula Silva e o marido, Maik do Nascimento, com os dois filhos em ocupação no Rio: refeição é angu com feijão

Luana de Paula Silva e o marido, Maik do Nascimento, com os dois filhos em ocupação no Rio: refeição é angu com feijão 

'Fogão' improvisado com madeira

O marido dela, Maik do Nascimento, 28 anos, trabalha como pedreiro, mas tem tido dificuldade para conseguir emprego e faz um bico ali, outro acolá, para arrumar um dinheiro para levar para casa.

— Nós moramos há dois meses na ocupação, não recebemos o Auxílio Brasil e dependemos da ajuda de terceiros para ter o que comer — desabafa Luana, que cozinha em um "fogão" improvisado com madeiras. Para acender o fogo utiliza álcool.

Ela explica que fez a inscrição no Cadastro Único (CadÚnico), porta de entrada de programas assistenciais do governo federal, no último dia 8 e está torcendo para receber o Auxílio Brasil.

— Hoje nós comemos angu e feijão, era o que tinha. Sempre vamos atrás de carreatas (pessoas que doam alimentação pelo Centro do Rio), mas nem sempre tem — lamenta.

 

Bicos para levar comida para casa

Priscila Nunes de Araújo, 31 anos, mãe de quatro filhos, conta que o dinheiro do programa de transferência de renda dura apenas uma semana.

— O dinheiro do auxílio só dá uma semana. Vou ao mercado e compro somente o básico do básico. Carne já não sei mais o que é há muito tempo. Quando dá comemos ovo, salsicha, macarrão e feijão. As crianças bebem leite, mas tem vezes que o dinheiro não dá — lamenta Priscila, que trabalhava como faxineira na Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio, mas perdeu o trabalho com a pandemia.

O marido, Marcelo Lourenço, 31 anos, cata material para fazer reciclagem e faz bicos vendendo água nas ruas para complementar a baixa renda da família. Das crianças, Noemi (7 anos) e Enzo (4 anos) estão matriculados em uma escola pública e têm refeições diárias. Já Ana Flávia, de 3 anos, e Micaely, de 1 aninho, se alimentam com o que tem em casa.

— Se não fossem doações de cesta básica e quentinhas, a gente ficaria sem ter como comer — diz Priscila.

Michele Cruz, 36 anos, tem dois filhos (Iago, de 19, e Rayca, de 15) e seis netos. Todos moram na mesma ocupação. Ela recebe o Auxílio Brasil e se vira para garantir comida para todo mundo:

– Na minha época, quando era criança, a gente passava dificuldade, mas não era tanta. Hoje em dia recebo os R$ 600 e não dá pra comprar quase nada, tudo está muito caro no supermercado. Imagina a quantidade de leite para seis crianças? O dinheiro não dá – afirma Michele.

 

Doações e venda de doces

Carla Aguiar tem 35 anos, é mãe solteira de quatro filhos, sendo um maior de idade. Dois menores, Felipe e Daniel, 14 e 12 anos, respectivamente, estão matriculados na escola. O rapaz, Marcio, de 16, está trocando de colégio, conta a mãe.

— Se não fossem as doações e minha venda de doces a gente estaria perdido. Ando tudo por aí para vender as coisas, só volto quando tenho pelo menos o dinheiro da comida das crianças — diz ela.

Milena Gregório, tem apenas 24 anos, e dois filhos: Victor Hugo (4) e Aylla (1). É mãe solteira e vive em condições precárias. No cômodo onde moram há apenas um colchão, um fogareiro, e um pano na janela.

As roupas estavam amontoadas em cadeiras. Avessa a tirar foto, ela conta que deu entrada no Auxílio Brasil, mas demorou mais de um ano para receber. Hoje, tinha somente macarrão para alimentar os filhos.

— Recebo o auxílio, mas o vale-gás não, apesar de o governo dizer que tenho direito — reclama.