A cada três horas, uma pessoa foi internada para amputar um ou mais dedos dos pés, o pé ou a perna na rede pública do estado do Rio em função do diabetes, no ano passado. E esse quadro vem piorando. Nos seis primeiros meses deste ano, o intervalo de tempo caiu para um paciente a cada duas horas e 40 minutos. Enquanto o Brasil registrou, a cada cem mil habitantes, 14,64 internações nesse perfil, no Estado do Rio foram 18,26. É o terceiro maior índice do país e o primeiro da Região Sudeste no ano passado.

— Estamos diante de um problema de saúde pública gigantesco, causado pela falta de prevenção, pelo mau controle do diabetes na atenção básica. O Brasil realiza cerca de 50 mil amputações ao ano. É uma multidão de mutilados e não temos reabilitação para todos — alerta o médico Carlos Eduardo Virgini, da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular.

 

 

Segundo dados do Ministério da Saúde, organizados pela Prefeitura do Rio, em 2018, a rede pública recebeu 3.134 internações de pacientes diabéticos submetidos a amputações (média de 261 ao mês), sendo que 458 morreram. Nos seis primeiros meses de 2019, foram 1.627 internações com amputações (média de 271 ao mês) e 222 mortes, conferindo ao Rio 9,42 internações a cada cem mil habitantes e a triste liderança no Sudeste. O estado só não tem taxa de amputação maior do que Sergipe, Alagoas e Rio Grande do Norte. A média nacional é 7,08 por 100 mil habitantes.

 

 

Os dados revelam ainda que no topo da lista de hospitais públicos no Rio que mais realizam amputação de membro inferior em diabético está o Hospital Salgado Filho, no Méier. No primeiro semestre deste ano, a unidade notificou 172 internações com amputação e 19 óbitos. Na última terça-feira, após 18 dias internado na unidade — dois deles no corredor da emergência e sete na sala amarela — para tratar uma ferida num dedo do pé, o aposentado Ademir Velloso, de 77 anos e diabético, morreu. Quatro dias antes, havia passado pela terceira amputação. As duas primeiras aconteceram em 2014: primeiro de um dedo e, em seguida, da perna direita.

 

 

— Após 11 dias de espera, o pé do meu pai já estava todo necrosado. Estávamos desesperados quando conseguimos que ele fosse operado. Apresentou melhora, mas foi assim que Deus quis — disse Marcelo Velloso, que acompanhou durante a internação casos semelhantes ao de seu pai.

Mortalidade é mais alta em 13 hospitais

No primeiro semestre deste ano, a taxa de mortalidade em internações com amputação de membro inferior em paciente diabético foi de 13,64% no estado do Rio. No entanto, em 13 hospitais públicos, esse índice foi mais alto que a média. O pior resultado está no Hospital Federal do Andaraí, que contabilizou apenas 43 internações no período, mas registrou 16 óbitos, resultando numa taxa de mortalidade de 37,21%. Ou seja, a cada dez pacientes, três morreram.

 

 

Entre os hospitais com índices piores que a média estadual, o que mais realizou internações com amputações foi o Hospital municipal Pedro II, em Santa Cruz. Com uma taxa de mortalidade de 14,29%, a unidade registrou 119 internações com amputações e 17 mortes.

Segundo Carlos Eduardo Virgini, que chefia o serviço de cirurgia vascular da Uerj, um estudo feito em 30 hospitais públicos, em 2012, mostrou que a taxa de amputação no estado do Rio é de 60%. A cada dez pacientes que entram no hospital com uma ferida, seis são amputados.

— Nos hospitais municipais do Rio, essa taxa é ainda maior: 70% — diz Virgini.

O pé diabético envolve três fatores, causados pelo excesso de açúcar no sangue: a perda da sensibilidade no pé, que atinge 25% dos pacientes; doença arterial, que prejudica a circulação sanguínea de 30% dos doentes; e a infecção, que se agrava por causa da demora no atendimento.

Para Virgini, a alta incidência de complicações do diabetes no Rio se deve a fatores como o encolhimento da cobertura da atenção básica — de 67%, em 2017, para 52,8%, segundo o Ministério da Saúde. No fim do ano passado, a prefeitura reduziu o número de equipes de saúde da família de 1.283 para 967 e, hoje, 139 estão incompletas.

— A atenção primária é a primeira barreira para evitar complicações. Com educação das equipes de saúde e das famílias, conseguiríamos evitar 85% das amputações — afirma Virgini.
 

Cuidados simples na receita

O cuidado diário com o pé dos diabéticos é o melhor remédio para reverter o grave quadro de amputações, de acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, Rodrigo Moreira:

— Após a primeira ferida, o risco de amputar é muito grande. Por isso, a importância de ter um bom controle da glicose, do colesterol e da pressão. Isso evita as complicações do diabetes. É preciso estimular médicos a examinar o pé do diabético e ensinar pacientes a lavar e secar os pés e cortar as unhas.

Foi com esses cuidados que a dona de casa Juciane Gomes, de 37 anos, evitou que a mãe, Iracy Maria Gomes, de 65, passasse por uma segunda amputação. Em março, ela acompanhou a idosa por mais de um mês no Hospital Pedro II e não gosta nem de lembrar do que viu por lá:

— O quadro da minha mãe agravou por causa da demora no atendimento. As pessoas eram largadas na sala amarela, no calor, sem ar-condicionado, para morrer. Eu presenciei dois casos de senhoras que amputaram um dedo e deixaram a perna delas apodrecer, porque não trocavam curativo nem davam medicações para elas. As duas morreram. O mau cheiro e as moscas em cima delas tornavam aquela cena insuportável. Eu limpei e passei hidratantes nessas idosas várias vezes.

Juciane conta que a mãe teve parte do pé amputado e, depois, os médicos afirmaram que seria preciso cortar a perna:

— Decidi tirar minha mãe de lá e passei a cuidar da ferida. Minha mãe está ótima.

Outros cuidados importantes para os diabéticos são: nunca andar descalço; olhar os pés todos os dias; ao comprar sapato, experimentá-lo por meia hora e, ao retirá-lo, verificar se o pé está vermelho.

— O que você não sente, você não vê. Atendo pacientes com a sola do pé toda queimada porque andaram em areia escaldante. Já tive paciente que parou na emergência porque viu um pouco de pus na meia. Ele estava com um prego de quatro centímetros encravado no pé e não sentia — conta Virgini.

Mas o médico também aponta a carência de atendimento nas policlínicas e ambulatórios de cirurgia vascular como mais uma falha na linha de cuidado que acaba empurrando o paciente para as emergências.

— Depois que a ferida se instala, o poder de resolução das clínicas da família é limitado. Nesse estágio, as policlínicas deveriam atuar. Com a revascularização, pode-se tentar evitar a amputação ou minimizá-la. Mas o paciente demora tanto a conseguir atendimento que, quando chega à emergência, não há mais o que fazer, a não ser amputar.

Rio tem maior percentual de diabéticos

De acordo com a pesquisa Vigitel, feita pelo governo federal nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, o percentual de adultos que afirmaram ter diabetes variou entre 5,2% em Rio Branco e 9,8% no Rio de Janeiro. Entre homens e mulheres, a maior frequência foi observada no Rio (8,2%, em homens, e 11,2%, em mulheres). Entre os homens, 98% afirmaram usar remédios para controlar a doença, o segundo maior percentual do país. Já entre as mulheres, o Rio só aparece em 14º lugar, com 89,6% das pacientes fazendo uso de medicamento.

Este ano, o principal símbolo do Rio, o Cristo Redentor, foi escolhido pela Sociedade Brasileira de Diabetes para a ação que chama atenção para o Dia Mundial do Diabetes. No próximo dia 14, o monumento será iluminado de azul para o movimento Novembro Diabetes Azul.

A Secretaria municipal de Saúde do Rio informou que todos os pacientes que buscam assistência para pé diabético são avaliados por cirurgião vascular, mesmo quando estão na emergência do hospital. Para o tratamento, afirma a secretaria, é necessária a estabilização. “Os pacientes diabéticos que internam pela emergência já estão em fase mais adiantada da doença e, consequentemente, terão outras complicações como enfarte e AVC e, por isso, temos uma maior mortalidade”, diz a nota. Já a direção do Salgado Filho afirmou que o hospital é uma unidade de portas abertas, com demanda espontânea muito grande.

A Secretaria estadual de Saúde afirmou que, desde janeiro, investiu mais de R$ 400 milhões para fortalecer e ampliar a Estratégia Saúde da Família nos municípios, a realização de exames e cirurgias, assim como compra de remédios e melhorias em UPAs.

Por meio do Ministério da Saúde, a direção do Hospital do Andaraí informou que, por se tratar de uma unidade de média e alta complexidade, recebe apenas casos de pacientes com complicações graves, o que reduz as possibilidades de tratamento.