A Justiça mineira determinou que a cidade de Conselheiro Lafaiete volte imediatamente a aplicar o livro “O Menino Marrom”, do premiado escritor Ziraldo, dentro das escolas. A decisão, do juiz Espagner Wallysen Vaz Leite, dessa quinta-feira (27 de junho), descreveu a suspensão da obra no ensino fundamental como “censura”. A prefeitura da cidade da região Central de Minas está sujeita a multa de R$ 5 mil por dia caso não cumpra com o determinado. 

De acordo com o processo, o magistrado da 1ª Vara Cível da Comarca de Conselheiro Lafaiete argumentou que suspender o livro é impedir que os estudantes tenham “ensinamentos importantes para o seu desenvolvimento como cidadãos de uma sociedade diversa e plural”.

Na análise que subsidiou a decisão, o juiz Wallysen Vaz Leite apresenta o conceito de censura para descrever o que aconteceu na cidade. “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”, disse, citando a Constituição. 

Ainda, conforme a liminar, a pressão de pais e familiares de alunos que foi apontada pela Secretaria de Educação de Conselheiro Lafaiete como motivo para a suspensão do livro não é razão suficiente. “A mera pressão exercida por supostos pais de alunos em relação a conteúdos educacionais veiculados para os estudantes não deve ser motivação idônea para que a Administração Pública, em detrimento do direito da educação e em contrariedade a especialistas da área, censure”, escreveu.

A prefeitura de Conselheiro Lafaiete

A cidade tem até 20 dias para contestar a liminar, porém, a reportagem apurou que a Secretaria de Educação já enviou comunicado às escolas permitindo e solicitando o retorno do livro de Ziraldo às classes. 

"O menino marrom"

“O Menino Marrom” conta a história de uma amizade entre duas crianças, uma negra e outra branca. Publicado em 1986, o livro é usado atualmente como forma de abordar o tema da diversidade racial e o enfrentamento ao preconceito entre alunos do ensino fundamental. 

Entenda 

O livro infantil “O Menino Marrom", do premiado escritor Ziraldo, foi proibido de ser aplicado nas salas de aula das escolas municipais de Conselheiro Lafaiete, na região Central do Estado, em uma decisão de grande repercussão no dia 19 de junho.

A prefeitura da cidade publicou uma nota oficializando a suspensão do exemplar e dizendo que o motivo seria a repercussão negativa do conteúdo do livro entre pais e familiares dos alunos. Áudios de pais de alunos circularam nos grupos de responsáveis questionando trechos específicos da história.

A prefeitura de Conselheiro Lafaiete afirmou que o exemplar “aborda de forma sensível e poética” a amizade interracial. “Os personagens, apesar de suas diferenças, desenvolvem uma amizade genuína e se divertem juntos”, disse por meio de nota.

Mesmo assim, a Secretaria de Educação do município cedeu à repercussão negativa entre os familiares. “Lamentamos que tenha havido interpretações dúbias acerca do mesmo”, publicou o Executivo. 

Reclamações

As reclamações dos pais são voltadas para ao menos duas partes da história do livro. Uma delas envolve um pacto de amizade, em que os personagens simulam uma ligação entre eles por meio de uma tinta azul. O pastor Chrystian Dias gravou um vídeo nas redes sociais com posicionamento contrário ao uso da obra literária nas escolas de Conselheiro Lafaiete.

'Censurar não é o caminho', diz especialista

Na avaliação do sociólogo e especialista em desigualdades raciais, João Saraiva, a suspensão da obra é uma perda para as crianças, que teriam um exemplo de autoestima negra em mãos. “‘O Menino Marrom’ é usado há muitos anos para falar de maneira leve e poética sobre as diferenças raciais. Cor de pele, formato de boca, nariz, é leve e elogioso. Uma obra que apresenta de uma forma muito positiva os traços negros e funciona para elevar a autoestima das crianças”, analisa.

Saraiva reforça que o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas é lei federal (Lei 10.639), e o livro do Ziraldo, junto de outros exemplares, como “Menina Bonita do Laço de Fita”, de Ana Maria Machado, e “A bonequinha preta”, de Alaíde Lisboa, assume essa função de abordar o tema de forma leve. “Censurar nunca é o caminho certo. Se apareceram questões entre os pais, seria um momento de tratar essas dúvidas de forma consciente, e não dispensar o livro dizendo que ele é complexo, porque ele não é”, afirma.

O especialista provoca ainda uma discussão sobre os tipos de livros que se tornam alvo nas instituições de ensino. Segundo ele, algumas referências clássicas com expressões racistas, que teriam motivo para a suspensão, continuam sendo estudadas em sala de aula. “Podemos citar, por exemplo, textos de Monteiro Lobato, em que a personagem Tia Nastácia é discriminada e diminuída. Por que ele continua como material didático, mas Ziraldo é proibido? Por que um livro positivo gera tanto incômodo, mas falas raciais hiper negativas não?”, questiona.